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Volume 1 Número 1 - Novembro de 2009
ISSN: 2177-6571

O CONSUMIDOR DO SERVIÇO DE TRANSPORTES TERRESTRES

THE CONSUMER OF THE TERRESTRIAL TRANSPORTS SERVICES
21/11/2009

Fernando Barbelli Feitosa

Resumo

O Transporte representa o ato de conduzir uma carga (passageiros, bens ou informação) de um lugar para o outro. O serviço de transportes, por sua vez, consiste em uma obrigação de fazer orientada a viabilizar o tráfego de veículo pelo canal entre localidades geograficamente separadas ou a própria condução da carga entre os pontos distantes, sendo certo que se identifica em cinco modalidades: o transporte ferroviário de bens e passageiros, o transporte rodoviário de bens e passageiros e a disponibilização de infra-estrutura terrestre para o tráfego de veículos. A CF dispôs que algumas atividades de transporte são serviços públicos, por significar facilidades passíveis de prestação pela própria Administração Pública ou seus delegatários, para satisfazer necessidades primárias ou secundárias da sociedade. Nessa condição, utilizando-se a classificação doutrinária, os serviços de transporte poderiam ser classificados como serviço de utilidade pública, impróprio do Estado, industrial e uti singuli. Ante essas características, identifica-se a tutela da legislação consumerista a tais serviços quando seu usuário dele se utilizar como destinatário final econômico ou destinatário final com vulnerabilidade econômica, jurídica ou técnica. Nessa linha, cabe à ANTT, tornar viável essa tutela, juntamente com o SNDC e PROCONs.

Palavras-chave: transportes terrestres, servicos publicos, direito do consumidor.
Abstract

The transport fulfills the function of carrying freight (passenger, goods or information) from one place to another. In this sense, the transport service consists of an obligation to make feasible the traffic of a vehicle through a way (channel or line), that links two geographically separated locations, or the driving, itself, of the load, from one point to another. Five kinds of terrestrial transports can be identified: railway passengers and freight transport; road passenger and freight transport and highway services –maintenance of infrastructure and support of traffic conditions. The Brazilian Constitution states that some of the transport services are public services, since they are facilities that can be performed by the Public Administration or its delegates, in order to satisfy primary and secondary necessities of the society. In this case, according to Brazilian Public Law writers, transport services can be classified as public utility services, improper to the Public Administration, industrial (with profit purposes) and uti singuli. So, the consumer’s legislation shall be applied in order to defend the interests of the transport services users, when they represent the final economic destination of these services or the final destination, considering the legal, economic or technical vulnerability of the services consumer. In this sense, ANTT should provide consumer’s rights to these users together with the other entities of consumer defense.

Keywords: land transportation, public services, consumer law.

1. Do Transporte

Para a análise do tema, cabe verificar as nuanças do transporte e dos serviços dele oriundos. Juridicamente, classifica o SILVA (1998, p. 830):

“TRANSPORTE. De transportar, do latim transportare (levar além, conduzir para outro lugar), gramaticalmente exprime a ação de conduzir, ou de levar coisas e pessoas, em aparatos apropriados, de um a outro lugar. Assim, transporte é a própria condução, ou a deslocação de coisas ou pessoas, em veículos ou meios apropriados a esse mister. (...) No conceito do Direito Civil e do Direito Comercial, transporte designa o contrato em virtude do qual um dos contratantes, denominado transportador, ou condutor, se obriga a conduzir, a levar de um ponto a outro, coisa ou pessoas mediante pagamento pelo outro contratante, conhecido pelo nome de expeditor, carregador ou passageiro, de certa importância ou determinado preço. Assim, o transporte se entende de mercadorias, ou de carga, e de pessoas, ou de passageiros. (...)”

Pela definição, verifica-se que a condução de um lugar a outro, que define o transporte, pode ser realizada pelo próprio transportador ou por outro, em regra ao seu mando, mas o ato de viabilizar o deslocamento também constitui atividade destinada ao transporte. Por assim dizer, o transporte tem feições mais amplas que as ordinariamente consideradas.

Para melhor explicar a assertiva, devemos analisar os elementos que caracterizam o transporte. Obrigatoriamente há uma carga, tipificada como mercadorias, pessoas ou informação, um veículo, um canal ou meio que permitirá o deslocamento e dois pontos geograficamente distantes, ligados pelo canal e/ou manipulados pelo veículo. Esses elementos configuram, ainda, transporte terrestre, quando o canal decorre desse meio.

Assim, o serviço de transportes consiste em uma obrigação de fazer orientada a viabilizar o tráfego de veículo pelo canal entre localizações geograficamente separadas ou a própria condução da carga entre os pontos distantes. No caso dos transportes terrestres, os canais utilizados são a rodovia e a ferrovia e, os veículos, o carro, o trem e o ônibus e podem ser prestados sob cinco modalidades: o transporte ferroviário de bens e passageiros, o transporte rodoviários de bens e passageiros e a disponibilização de infra-estrutura terrestre para o tráfego de veículos


2. Do Serviço Público de Transportes Terrestres

O serviço público, a rigor, representa todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, direta ou indiretamente, por atribuição legal, para a consecução de seus fins, satisfazendo necessidades coletivas, sob regime de direito público total ou parcial (DI PIETRO, 2004, p. 99). MEIRELLES (2000, p. 306) assim define:

“Serviço Público é todo aquele prestado pela Administração e por seus delegados, sob normas e controle estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado”

Logo, o serviço público suprindo em uma carência dos administrados, pela atividade pública, que não se confunde com o poder de polícia. Ainda MEIRELLES (2000, p. 307), “levando-se em conta a essencialidade, a adequação, a finalidade e os destinatários dos serviços, podemos classificá-los em públicos e de utilidade pública; próprios e impróprios do Estado; administrativos e industriais; ‘uti universi’ e ‘uti singuli’ (...)” Segundo o grande autor, os serviços públicos seriam os diretamente prestados pela Administração aos administrados, ante a sua essencialidade e necessidade social e, por isso, privativos do Poder Público, diferenciando-se dos serviços de utilidade pública, uma vez que estes são prestados em razão de sua conveniência, logo acabam sendo delegados a terceiros, que os exercerá mediante concessão, permissão ou autorização, servindo-se da remuneração dos usuários. Enquanto o primeiro teria por foco as carências gerais e essenciais da sociedade (bens comuns), a outra modalidade objetivaria “facilitar a vida do indivíduo na coletividade” (idem, p. 308), proporcionando-lhe mais conforto e bem estar (bens individuais).

Também interessante para o presente trabalho cotejar os serviços próprios e impróprios e os denominados uti singuli e uti universi. Próprios seriam os diretamente ligados às atribuições estatais, como segurança pública, higiene e saúde e meio ambiente saudável. Por outro lado, os impróprios se destacam nas necessidades da comunidade direcionadas a interesses comuns de seus membros e, por isso, acabam por deter conotação empresarial e individualização na prestação. Os serviços uti universi ou gerais são os que satisfazem, de forma indiscriminada, os administrados, atendendo a coletividade em geral e cuja utilização não se pode medir – daí porque remunerados por impostos (art. 167, IV, CF). A designação uti singuli, de seu lado, traduz serviços com usuários determinados. A propósito (idem, 309):

“Serviços ‘uti singuli’ ou individuais: são os que têm usuários determinados e utilização particular e mensurável para cada destinatário, como ocorre com o telefone, a água e a energia elétrica domiciliares. Esses serviços, desde que implantados, geram direito subjetivo à sua obtenção para todos os administrados que se encontrem na área de sua prestação ou fornecimento e satisfaçam as exigências regulamentares. São sempre serviços de utilização facultativa e mensurável, pelo que devem ser remunerados por taxa (tributo) ou tarifa (preço público), e não por imposto.”

Destarte, o serviço de transportes terrestres, em geral, poderá ser considerado como serviço de utilidade pública, impróprio do Estado, industrial (por produzir renda ao que presta - remuneração por tarifa ou preço público) e uti singuli. Entretanto, há serviços de transporte, como é o caso do transporte rodoviário de cargas, que, pela matriz constitucional, constituem atividade econômica e não serviço público. Elucida GARCIA (2004, 66/67):

“A distinção e delimitação entre serviço público e atividade econômica é, pois, de fundamental importância para a delimitação e contornos da função regulatória. Os serviços públicos têm sua matriz constitucional no art. 175, que confere ao Poder Público a prerrogativa de prestação de serviços públicos diretamente ou sob regime de concessão ou permissão. Significa dizer, portanto, que o titular do serviço público sempre será o ente político estatal, seja federal, estadual ou municipal, o que depende da repartição das competências estabelecidas pela própria Constituição Federal, além dos demais serviços que podem ser definidos como públicos pela própria legislação infraconstitucional. (...) Essas [atividades econômicas], ao revés, são destinadas aos particulares, já que a opção política do Estado Brasileiro foi pela livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170 da CF), o que permite asseverar que, como regra, o particular (pessoa física ou jurídica) será o titular do desempenho da atividade econômica. Essas atividades, muito embora desempenhadas pela iniciativa privada, submetem-se aos limites impostos pelo Poder Público no exercício da Polícia Administrativa, os quais condicionam e limitam a atuação dos entes privados com vistas ao atendimento do bem comum.”

Posteriormente, esta distinção será necessária na avaliação do transporte de carga rodoviário, em que sua natureza de atividade econômica se sobrepõe, para que constitua serviço de transporte privado, fora dos conceitos de serviço público.

 

3. Da Regulação do Serviço de Transportes Terrestres

Antes de conceituar o usuário, importante focar, em rápido cotejo, a atividade de regulação no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente sobre os transportes terrestres. O regime de concessão de serviços de transportes terrestres e a legislação sobre essa outorga restou assentado na Constituição Federal, que dispôs expressamente:

“Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XI - trânsito e transporte;”

Sob esse aspecto, a competência determinada para a União, no que tange aos transportes terrestres, foi ampla, no sentido de orientar essa prestação como de origem pública (serviço público por essência) consoante sua essencialidade e a necessidade nacional. A atribuição do Poder Constituinte originário denota valor principiológico ao bem jurídico, qual seja, seu balizamento conforme interesses maiores da Carta de Direitos Brasileira, em torno dos ideais de justiça, solidariedade e dignidade da pessoal (arts. 1º, III e 3º, I, da CF). Apesar da aparente carga teórica que os princípios de regência dos transportes terrestres parecem agregar ao estudo, cumpre notar que esses são os pontos de partida do Administrador Público para orientar a atividade delegada, sem as quais, jamais se poderia regular tais atividades.

Ademais, destacam-se ainda os seguintes princípios para o serviço apresentado: a) função social da propriedade (art. 5º, XXIII da CRB) – na medida em que a utilização do bem público consubstanciado no serviço de transporte deve permitir inclusão social e ampliação de acesso; b) função social do contrato (art. 421 do CCB) – tendo em vista que o serviço, que detém interesse coletivo, se materializa pelo contrato e tem por escopo atender objetivos maiores do que aqueles estipulados no acordo bilateral; c) função social do serviço público de interesse coletivo (art. 7º, II da Lei 8.987/95) – ao passo que o transporte, em si, não somente permite a movimentação da mão-de-obra dos centros urbanos, assim como possibilita, direta e indiretamente, o desenvolvimento de pólos regionais, e.g. facilitação dos insumos ou escoamento de produção agrícola ou industrial; d) livre iniciativa e livre concorrência (arts. 1º, IV e 170, IV da Constituição Federal) – face à necessidade social do acesso do empresariado ao mercado, bem como a garantia de sua competitividade em ambiente saudável, para o desempenho de suas atividades; e e) equilíbrio econômico-financeiro (arts. 37, XXI da CF, 58, § 2º da Lei 8.666/93 e 9º, § 2º e 10 da Lei 8.987/95) – nomeado instrumento intrínseco do prestador do serviço público, que reside na manutenção das condições inicialmente contratadas na licitação ou processo de outorgada – se as coisas permanecerem consoante acordadas (rebus sic stantibus), o princípio sobreleva o nível justo de remuneração para o serviço, fomentando a competitividade e a adequação das tarifas.

Em vista dos contornos Constitucionais dos serviços públicos de transportes terrestres, há que se pontuar os princípios legais da prestação em si, dispostos na Lei 8.987/95, in verbis:

“Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.”

“Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: I - receber serviço adequado; II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos; III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente. IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado; V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço; VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.”

A norma jurídica que se depreende do texto de lei aponta para as características dos serviços delegados, que revelam postulados aplicados aos mesmos e obrigatórios de acolhimento, tanto por parte do Ente Público que transferiu a prestação do serviço, para o efetivo prestador do mesmo e pelo usuário, quando for o caso. Logo, extrai-se da norma que o serviço público deve ser adequado ao pleno atendimento do usuário e, para tanto, deve: a) ser regular: um serviço de interesse coletivo há que atender à demanda de seus usuários da maneira mais suficiente possível; b) manter continuidade: um serviço essencial não pode ter seu ciclo interrompido, cabendo seguir seu caminho ainda que ameaçado por tribulações; c) ser eficiente: a leitura desse valor-princípio relaciona-se ao procedimento da prestação, modus operandi correto e mais acessível, mas com alvo no resultado final do pleno atendimento aos usuários; d) ser seguro: cumpre resguardar o usuário, quando usufrui os serviços públicos concedidos, que entrega sua confiança ao prestador, em especial, no caso do transporte; e) manter-se atual: a obrigação do acompanhamento das inovações tecnológicas denota uma preocupação com o melhor atendimento do cliente, que terá à disposição facilidades influenciando na própria qualidade da prestação; f) perquirir a generalidade: princípio fundamental, há que ser interpretado pela técnica mais ampla possível, no caso dos transportes terrestres tanto para alcançar o maior público (art. 3º, IV, in verbis, da Lei 9.074/95 – inclusão social geográfica), assim como, na realização do valor constitucional da igualdade, viabilizar o atendimento equânime e geral (reconhecida a capacidade da prestadora) do mesmo – vetando-se a discriminação indistinta de usuários; g) propagar a cortesia na prestação: destaca o próprio requisito do atendimento dos clientes que, apesar de trazer forte carga moral, ressalta conteúdo jurídico, identificado no reconhecimento da dignidade da pessoa humana que figura como usuário; e h) praticar a modicidade tarifária: o prestador, observando o nível justo de sua remuneração e incentivando a redução das desigualdades sociais, há que tornar o serviço mais acessível, evitando as tarifas proibitivas e, junto com o princípio da generalidade, afastando a discriminação de usuários por preço (art. 3º, IV, in verbis, da Lei 9.074/95 – inclusão social por renda).

Vistos os parâmetros gerais que norteiam a prestação dos serviços de transportes terrestres pode-se partir para um reconhecimento mais pormenorizado do usuário.


4. Do usuário de Serviço Público

O usuário constitui um dos sujeitos do contrato privado de prestação de serviços público, que há de ser conduzido com dirigismo de direito público ante a natureza da obrigação de fazer desempenhada. Isso significa que o usuário é o detentor do serviço público adequado, ou seja, aquele que recebe a prestação pela Administração Pública ou delegatário.

Dispôs a Constituição Republicana de 1988 sobre o usuário:

“Art. 37. (...) § 3º A lei discipliará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. (...)

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. (...) Parágrafo único. A lei disporá sobre: (...) II - os direitos dos usuários;”

 

Consoante o comando constitucional, a participação do usuário na Administração Pública, com vistas a garantir a devida prestação do serviço público, deveria ser veiculada por lei específica, destinada a instituir um “Código de Defesa do Usuário” (art. 27 da EC 19/98 determinou a elaboração de lei de defesa do usuário de serviços públicos). Entretanto, dez anos depois da referida emenda, nenhuma lei sobre o tema foi promulgada.

Não obstante a omissão legislativa, os direitos do usuário devem ser depreendidos, especialmente, da Constituição Federal e da Lei 8.987/95 e, quando cabível, do Código de Defesa do Consumidor. É verdade que, a princípio, o usuário, nomeadamente, só deteria as garantias previstas no art. 7º da Lei 8.987/95, contudo, o arcabouço jurídico que tutela essa figura irradia especialmente do contrato de prestação de serviço, denunciado pelo vínculo obrigacional estabelecido entre as partes – que pode ter cunho consumerista. Sobre a aplicação do CDC aos serviços públicos concedidos, leciona SOUZA (2003, p. 106/107):

“Neste passo, é importante aviventar que o Código de Defesa do Consumidor. Além de concretizar a responsabilidade objetiva dos prestadores de serviços públicos fixada na Constituição da República de 1988, como salientado, equiparou o usuário do serviço público à figura do consumidor, garantindo-lhe a adequada e eficaz prestação de tais cometimentos, inclusive a continuidade quanto aos essenciais, submetendo o tratamento jurídico do usuário dos serviços públicos à sua disciplina, no que couber. E assim ao proceder, em matéria de serviços públicos, ao que parece, caminhou bem o legislador, pois fixou legítimos standarts, conceitos jurídicos indeterminados, a serem interpretados pelo aplicador da norma no caso concreto. E nem poderia ser diferente, considerando que a própria Constituição da República previu uma Lei Geral Nacional, para a disciplina da prestação dos serviços públicos, lugar comum para a especificação do tema.”

4.1 O usuário e o consumidor de serviços de transportes terrestres

O descortinar do usuário perpassa pelo entendimento da relação jurídica havida, que contém particulares de necessária menção, valendo repisar que o serviço público uti singuli pode ser prestado pelo delegatário ao usuário. Nessa cadeia, há duas relações jurídicas: um contrato de direito público entre o Poder Público e o delegatário, pelo qual o segundo passa a ser titular da prestação do serviço e se compromete a exercê-lo e um contrato de direito privado entre o delegatário do serviço público e o usuário, que recebe o serviço e paga a tarifa. Note-se que a natureza privada desta última avença, ante a natureza pública do serviço, atrai o dirigismo estatal do contrato, que trará conteúdo aos direitos do usuário.

O usuário do serviço de transportes terrestres, diferente daquele dos serviços de energia, telecomunicações ou água e esgoto, nem sempre poderá ser considerado como consumidor. De fato, a legislação desses outros serviços públicos mencionados enfatizou seu enquadramento enquanto consumidores, figura típica sob a tutela na Lei 8.078/90.

Por outro lado, no caso dos usuários de transportes terrestres, como acima mencionado, deverá ser realizada uma análise sobre a relação contratual estabelecida com o delegatário e verificar o conteúdo jurídico que lhe pode ser aplicado. Isso não significa que se afasta a qualidade de consumidor em todos os casos e que estes usuários são menos protegidos juridicamente, mas sim que, em determinadas situações, será visto como consumidor e, em outras, enquanto usuário, com direitos orientados por aqueles princípios acima enunciados.

Consoante leciona PFEIFFER (2008, 230/231), três correntes doutrinárias explicam o fenômeno da aplicação do Estatuto do Consumidor ao usuário. Consoante a primeira linha, a Lei 8.078/90 aplicar-se-ia a qualquer serviço público, uma vez que o Estado, ou seu delegatário, quando exerce a prestação, age como se fornecedor fosse. Conforme a segunda corrente, o CDC somente incidiria sobre os serviços públicos impróprios, específicos e divisíveis, remunerados por taxa ou tarifa. Finalmente, a última tese consideraria que, além dos requisitos da segunda corrente, para se admitir a aplicação Código de Defesa do Consumidor, ainda seria necessário que tais serviços fossem prestados mediante atividade uti singuli – para excluir do alcance do referido Estatuto os serviços públicos remunerados por impostos ou contribuições, como é o caso da previdência social. Conclui o autor:

“Neste contexto, entendo que a ausência de remuneração específica para os serviços públicos gerais ou uti universi impede que eles sejam submetidos às disposições do CDC, já que o Estado não se enquadra no conceito de fornecedor adotado pela Lei 8.078/90. Instaura-se entre o Estado e o usuário uma relação de cidadania, em que o direito à utilização do serviço público advém do fato do usuário ser residente no Brasil e a ele fazer jus por disposição constitucional e não por haver contratado onerosamente o seu usufruto.

Na realidade, o usuário de serviço público é um gênero do qual o consumidor é uma espécie. Assim, todos que utilizarem o serviço público são considerados seus usuários. No entanto, nem todo usuário será considerado consumidor, pois, para sê-lo, faz-se necessário que se enquadre no conceito estatuído no art. 2º. do CDC, que possui a seguinte redação: ‘consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’.”

Duas teorias ainda precisam ser mencionadas sobre a aplicação do CDC, em relação ao serviço prestado: a finalista ou subjetiva e a maximalista ou objetiva. Pela teoria finalista, a proteção do consumidor visa equilibrar a relação profundamente desigual estabelecida entre o adquirente do bem ou serviço e o fornecedor. Isso porque não faria sentido tutelar de maneira especial aqueles que utilizam o produto ou serviço como insumos ou etapas de sua atividade produtiva, devendo, em conseqüência, tal relação ser regulada pela legislação civil e comercial. Nesse sentido, consumidor é apenas o destinatário final econômico do produto ou serviço, representado pelo agente que frui o produto ou serviço para proveito próprio ou familiar, não o utilizando em atividade econômica empresarial. FILOMENO aponta que essa teria sido a mens legis do CDC quando conceituou o consumidor (2007, p. 28).

Por sua vez, a teoria maximalista enfatiza, objetivamente, os preceitos do art. 2º do CDC, pregando que indiferente se quem consome desenvolve atividade econômica endereçada ao lucro, quando destinatário final fático do produto ou serviço, preencheria a figura do consumidor. Assim, aquele que retira do mercado o bem ou serviço e o consome, ainda que no desenvolvimento de uma atividade produtiva, teria a tutela do Código. Em face da doutrina, o STJ vem optando por aplicar a teoria finalista, com a extensão da aplicação do CDC quando verificada a vulnerabilidade in concreto; verifique-se o seguinte precedente:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. CONCESSIONÁRIA DE TELEFONIA. SERVIÇO PÚBLICO. INTERRUPÇÃO. INCÊNDIO NÃO CRIMINOSO. DANOS MATERIAIS. EMPRESA PROVEDORA DE ACESSO À INTERNET. CONSUMIDORA INTERMEDIÁRIA. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA CONFIGURADA. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE NÃO CARACTERIZADA. ESCOPO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. No que tange à definição de consumidor, a Segunda Seção desta Corte, ao julgar, aos 10.11.2004, o REsp nº 541.867/BA, perfilhou-se à orientação doutrinária finalista ou subjetiva, de sorte que, de regra, o consumidor intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no art. 2º do CDC. Denota-se, todavia, certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais, desde que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. (...) 7. Recurso especial não conhecido.” (REsp. 660.026/RJ, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINNI, DJU 27.06.05)

No contexto se inserem os serviços públicos de transportes terrestres, aplicando-se, in totum, as considerações realizadas, inclusive em razão de sua natureza uti singuli. Mas, como mencionado, após essa percepção, ainda deve ser analisada a relação contratual havida, verificando se o usuário é destinatário final econômico do serviço de transporte ou, em caso de utilizar do serviço na cadeia de produção, poderia ser considerada sua vulnerabilidade técnica na relação. Vale a menção da seguinte doutrina (AZEVEDO, 2006, 88/93):

“Em relação aos consumidores brasileiros, o Estado Democrático de Direito assume compromisso de promover, por meio da atuação dos seus três poderes, a defesa dos seus direitos e interesses econômicos e sociais (arts. 5º., XXXII c/c art. 170, V da CF/88 e art. 48 do ADCT). (…) A relação jurídica entre os prestadores (públicos e privados) de serviços públicos é uma relação de consumo (CDC, art. 3º., par. 2º.), se considerarmos esses serviços como as atividades prestadas diretamente pelo Estado ou por meio de empresas privadas que celebram contratos de concessão ou permissão com o poder público (CF/88, art. 175). Exemplos dessas atividades são o fornecimento de energia elétrica, de telefonia, de água, de transporte coletivo, bens considerados essenciais e até vitais (como a água) para a dignidade social e moral das pessoas (CF/88, art. 1º., III). Na realidade, a prestação de serviços públicos no Brasil vem sendo realizada quase que totalmente, pela iniciativa privada, por meio dos contratos de concessão e permissão. Esses prestadores privados são empresas ou um consórcio de empresas de natureza transnacional, fato que aumenta, ainda mais, a disparidade econômica e técnica entre consumidores e prestadores, e justifica o controle de qualidade dos serviços prestado, bem como o valor das tarifas cobradas aos consumidores-usuários que são, indiscutivelmente, o lado mais fraco dessa relação jurídica altamente massificada.”

4.2 Dos usuários específicos em transportes terrestres e seus direitos subjetivos

Para a mencionada análise, cumpre então estudar os seguintes usuários: a) o Passageiro de transportes terrestres ferroviários; b) o Passageiro de transportes terrestres rodoviário; c) o Motorista que utiliza os serviços da infra-estrutura rodoviária; d) o Contratante de serviço de transporte de carga ferroviário; e e) o Contratante de serviço de transporte de carga rodoviário (anote-se que a natureza privada dessa prestação, configurando atividade econômica, oportunamente discutida).

4.2.1 Do usuário dos serviços de transporte rodoviário de passageiros

O serviço de transporte rodoviário consiste em contrato pelo qual a transportadora se compromete a transportar, em veículo próprio ou de terceiro (à conta e ordem), o passageiro-usuário, que deve pagar a prestação antecipadamente. Presentes todos os elementos do transporte (a carga na figura do passageiro; o veículo, que pode ser ônibus ou outra modalidade de automotor; o canal, que são as rodovias) e o prestador, organizado enquanto sociedade empresário, há o serviço. Sobre o tema, SOUZA (2003, p. 46/47):

“Destarte, da análise da Carta Política brasileira de 1988, denota-se a exclusiva referência ao serviço de transporte coletivo local como essencial. Da referida dicção, no entanto, não se apresenta lícito concluir, a despeito de qualquer outra menção ao adjetivo essencialidade nos variados serviços público estabelecidos na Lei Maior, que tal espécie de cometimento estatal seja o único essencial, o que significa (absurdamente) admitir que não existem outros serviços essenciais e, até mesmo, no âmbito da União Federal e dos Estados-Membros, que cuidam de interesses proporcionalmente mais amplos do que os interesses pugnados pela Municipalidade, de alcance, portanto, regional, nacional e, eventualmente, supranacional. Daí a necessidade de se entender que outros cometimentos estatais, notadamente os serviços públicos de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros, ao lado do serviço de transporte coletivo local, embora não referidos expressamente pela Constituição da República, podem ser enquadrados no âmbito do espectro da essencialidade.”

Atualmente, o serviço de transporte rodoviário de passageiros pode ser delegado por permissão ou autorização (transporte regular de passageiros), conforme a Lei 10.233/01:

“Art. 13. As outorgas a que se refere o inciso I do art. 12 serão realizadas sob a forma de: (...) IV - permissão, quando se tratar de prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros desvinculados da exploração da infra-estrutura; V - autorização, quando se tratar de prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros, de prestação de serviço de transporte aquaviário, ou de exploração de infra-estrutura de uso privativo.

Art. 14. O disposto no art. 13 aplica-se segundo as diretrizes: (...) III – depende de autorização: b) o transporte rodoviário de passageiros, sob regime de afretamento;

Logo, na qualidade de serviço público, todas as garantias estabelecidas aos usuários (aqui denominados passageiros) são aplicáveis, ressaltando-se sua missão de inclusão social, balizada por dois princípios essenciais, acima destacados: generalidade e modicidade tarifária. Como dito, a generalidade cuidará do alcance amplo de usuários, principalmente na dimensão geográfica e a modicidade tarifária na não discriminação por renda. Ressalte-se que a discriminação positiva há que ser, por outro lado, incentivada, para garantir acesso e viabilidade, na busca da conformação do princípio da dignidade humana. Além dessas disposições, aplicáveis ainda os dispositivos do CCB/2002, principalmente relativos à responsabilidade civil objetiva do transportador em relação aos usuários e seus bens transportados (art. 731 c/c arts. 734 a 742), que decorre da obrigação intrínseca de resultado deste contrato. Assevera o CCB a impossibilidade de discriminação de usuários, em relação à capacidade do veículo (art. 739).

Ademais, o contrato para o transporte terrestre de pessoas tem nítido viés consumerista. A conclusão advém justamente da análise da relação: Um prestador, investido pelo Poder Público por meio de outorga, que efetiva o serviço mediante contrato dispondo sua obrigação de levar o usuário incólume da origem até o destino ofertado, contra o pagamento do preço por esse último.

Se o transportador, de seu lado, é pessoa jurídica que exerce no mercado atividade mediante remuneração (art. 3º caput e § 2º do CDC), o usuário, por sua vez, configura destinatário final do serviço (art. 2º do CDC), uma vez que não o utiliza como insumo para outro produto ou serviço. Destarte, todos os direitos do Código de Defesa do Consumidor são aqui extensíveis, em especiais os dispostos nos arts. 6º, 14, 20 a 22, 39, 42 a 51 e 54.

Interessante observar que o Decreto 2.521/98, que regula o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, dispôs, expressamente, sobre a aplicação do CDC aos usuários desse serviço público, fato que consolida a visão sobre o tema, in verbis:

Art. 5º Na aplicação deste Decreto, e na exploração dos serviços por ele regulamentados, observar-se-á, especialmente: (...) IV - as normas de defesa do consumidor;

No caso do transporte de passageiros à conta e ordem de terceiro, quando a pessoa jurídica contrata empresa de transporte como insumo de sua atividade – sociedades exploradoras de atividades turísticas ou de fretamento para fins não comerciais – os direitos de consumidor em face da prestadora de serviço de transportes de passageiros por afretamento de terceiro, se esgotam no serviço de transporte. Os demais prejuízos devem ser requeridos da própria agência de viagens, restando a transportadora solidária somente quando aos serviços de transporte que diretamente prestou. Já relação entre a empresa de turismo e a transportadora de passageiros tem cunho oneroso e deve atender aos preceitos estabelecidos no Código Civil, uma vez que, enquanto insumo que agrega valor ao seu serviço turístico, afasta a incidência do CDC.

Outro ponto relevante reside no usuário que se utiliza do transporte de passageiros para exercer seu ofício – o caso clássico do “caixeiro viajante”. Nessa hipótese, apesar do usuário não ser, a rigor, o destinatário final econômico do serviço, pois o utiliza em atividade empresarial, na linha das decisões do STJ, cumpre relativizar a aplicação da teoria finalista e reconhecer que o veículo e o canal (elementos essenciais do transporte) são necessários ao desenvolvimento de sua atividade, o que revela sua vulnerabilidade técnica e econômica em relação ao serviço e o coloca na posição de consumidor.

4.2.2 Do usuário dos serviços de transporte ferroviário de passageiros

O passageiro do transporte ferroviário tem grande semelhança com o anteriormente debatido. No caso, igualmente a carga é o passageiro, diferenciando-se no canal ou meio, que passa a ser a ferrovia, o veículo, que é o trem e o prestador que é representado pela operadora de serviços de transporte ferroviário. Dispõe a Lei 10.233/01:

“Art. 14. O disposto no art. 13 aplica-se segundo as diretrizes: I – depende de concessão:(..) b) o transporte ferroviário de passageiros e cargas associado à exploração da infra-estrutura ferroviária;”

Diante disso, nesse caso, valem as mesmas ponderações quanto à legislação aplicável ao transporte rodoviário de passageiros, especialmente em relação aos direitos de consumidor detidos pelo usuário, que é destinatário final econômico do serviço.

4.2.3 Dos usuários dos serviços do concessionário de infra-estrutura rodoviária

O serviço de transporte associado à infra-estrutura rodoviária constitui contrato que envolve conceitos mais sofisticados que os anteriormente comentados. A rodovia, tradicionalmente, tem enfoque mais acentuado na sua natureza de bem público, restando menos discutido o serviço de transporte que nela é desenvolvido. Como acima mencionado, o transporte depende de quatro elementos: a carga, o veículo, o canal e a distância geográfica que se quer percorrer. Considerando os elementos enunciados, restou vislumbrado o serviço de transporte que, tanto pode residir na efetiva obrigação do prestador de levar a carga em veículo próprio pelo canal, como pelo ato a viabilizar o tráfego do veículo pelo canal entre localizações geograficamente separadas. O serviço prestado pela concessionária da infra-estrutura rodoviária reside exatamente neste segundo termo.

Por isso que explorador da infra-estrutura rodoviária efetiva, positivamente, serviço a todo usuário que faz uso dessas vias públicas, consoante a definição de transportes terrestres que consideramos acima. Novamente, contrato de direito privado, com dirigismo público, se estabelece entre aquele que coloca as vias à disposição (delegatário) e o condutor que por elas virá a trafegar. Contudo, o pacto jurídico tem alguns meandros que merecem maior atenção para seu correto dimensionamento. Nos termos da legislação competente, o referido deve ser delegado por concessão, conforme dispõe a Lei 10.233/01:

“Art. 13. As outorgas a que se refere o inciso I do art. 12 serão realizadas sob a forma de: I – concessão, quando se tratar de exploração de infra-estrutura de transporte público, precedida ou não de obra pública, e de prestação de serviços de transporte associados à exploração da infra-estrutura; (...)”

O Código de Trânsito Brasileiro (CBT), de maneira conceitual, alocou a rodovia dentre as vias terrestres rurais brasileiras (arts. 2º e 60º), com a evidente idéia de caminho de ligação entre dois centros urbanos, com o caráter de permitir a trafegabilidade, viabilizando o deslocamento do usuário-condutor na malha rodoviária. Se, por um lado, o usuário paga pedágio para ter seu acesso à malha rodoviária garantido, por outro, é dever do concessionário manter as condições de utilização, como contraprestação, fornecendo o designado serviço de transporte. Por isso, ao espelho do acima comentado, os princípios e direitos relativos aos usuários dos transportes são plenamente aplicáveis, ressaltando-se aqui, com maior ênfase, o atendimento da modicidade tarifária. De fato, o concessionário da rodovia se responsabiliza pelo tráfego seguro do condutor a partir do momento em que entra na via, na parte em que concerne aos serviços públicos que explora.

Igualmente, urge vislumbrar que o usuário dos serviços dispostos pelo explorador da rodovia também se enquadra no conceito de consumidor. Pelo contrato acima descrito, pactuado tacitamente entre as partes, o condutor utiliza do serviço como destinatário final, pois seu objetivo está em percorrer o caminho pavimentado, pagando o preço. De seu lado, o delegatário constitui pessoa jurídica que oferece a atividade de transporte em contrapartida ao pagamento da tarifa, estabelecendo-se, assim, típica relação de consumo. Já decidiu o STJ:

“Concessionária de rodovia. Acidente com veículo em razão de animal morto na pista. Relação de consumo. 1. As concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com os usuários da estrada, estão subordinadas ao Código de Defesa do Consumidor, pela própria natureza do serviço. No caso, a concessão é, exatamente, para que seja a concessionária responsável pela manutenção da rodovia, assim, por exemplo, manter a pista sem a presença de animais mortos na estrada, zelando, portanto, para que os usuários trafeguem em tranquilidade e segurança. Entre o usuário da rodovia e a concessionária, há mesmo uma relação de consumo, com o que é de ser aplicado o art. 101, do Código de Defesa do Consumidor. 2. Recurso especial não conhecido.” (REsp. 467.883/RJ, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJU 01.09.03)

Em relação ao usuário que percorre a rodovia, mas não paga o pedágio, e, por suposta utilização não onerosa, não seria usuário da via, observa-se que nas normas dos contratos de concessão com prestação de serviços de transporte associados à exploração da infra-estrutura rodoviária, a tarifa constitui remuneração capaz de arcar com a despesa de tráfego de todos os usuários da rodovia. Isso porque nos estudos para a concessão da infra-estrutura e do serviço, devem ser considerados os usuários que se utilizam da via em trechos não pedagiados, bem como a perda de receita com “rota de fuga”, o que virá a impactar na fixação da tarifa. Quando o empresário se compromete a prestar o serviço, pela tarifa que ele calculou, deve então levar em conta essas contingências, assumindo o risco empresarial da atividade, e assim será remunerado inclusive pelos usuários que “escapam do pedágio”, assumindo, inclusive uma relação jurídica consumerista, arcando com os direitos de consumidor ao condutor que se utiliza dos serviços de transporte associado à infra-estrutura.

Ademais, também a relação entre o transportador autônomo de carga e o explorador do serviço de infra-estrutura rodoviária deve ser tutelada pelo CDC. A despeito do transporte de carga representar atividade econômica (e não serviço público), tal relação assume caráter consumerista, ao fundamento de que o condutor, para exercer seu serviço, precisa utilizar a via, consumindo o serviço da rodovia, aplicando-se a teoria finalista abrandada, uma vez que resta demonstrada a vulnerabilidade técnica e econômica do consumidor profissional, que pode ter sua atividade profissional inviabilizada sem a facilidade trazida pelo canal. Contudo, no caso da empresa de transportes, cumpre avaliar in concreto a vulnerabilidade, para que se aplique o CDC.

4.2.4 Dos usuários do transporte ferroviário de cargas

O transporte ferroviário de cargas constitui serviço público, consoante se interpreta da Lei 8.987/95 c/c 10.233/01, acima colacionadas. Por este serviço, um transportador, que exerce a concessão de transporte ferroviário de cargas, associado à exploração da infra-estrutura ferroviária, se obriga a deslocar coisas (bens, mercadorias, insumos etc.), por meio da ferrovia, entre pontos geograficamente distantes.

Na hipótese, os usuários detêm relação jurídica de natureza onerosa, pois, na qualidade de comerciantes tomadores de serviço, utilizam-se do transporte como elemento que virá a somar valor ao produto final e não representar custo indireto de produção. Logo, não representam destinatários finais econômicos e, tampouco, há vulnerabilidade entre os tomadores (grandes produtores) e os prestadores. Explica-se: consoante a logística moderna, a alocação espacial de bens de consumo ou insumos, antes de ser considerado como simples despesa de produção, representa montante efetivo agregado ao produto, por permitir sua colocação em mercados nos quais, sem a facilidade do processo logístico, não teria acesso. Esse transporte constitui insumo para a produção do bem, diretamente mensurável e adrede ao seu preço final, como subitem da cadeia produtiva.

Em vista desse viés empresarial que o usuário do transporte ferroviário de cargas (aqui incluído o Operador de Transporte Multimodal – OTM) assume, há um afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (ausência de identidade com o art. 2º do CDC), salvo em casos específicos nos quais os usuários, pessoas físicas ou jurídicas, contratam os serviços de transporte para a remessa de documentos e bens unitários ou em pequenas quantidades, sem fins comerciais (como no caso das remessas expressas). Essenciais os ensinamentos de SAMMARCO (2005, p. 1996/1997):

“Assim, quando se pretende analisar uma relação gerada por um contrato de transporte de carga, para se saber que espécie de relação jurídica se trata, revela notar que se a aquisição da mercadoria é a relação jurídica principal, o seu transporte nada mais é do que o meio de sua efetivação. Se o objeto da aquisição não caracteriza uma relação de consumo, o transporte assenta-se como atividade meio, integrando igualmente a cadeia produtiva. Nenhuma razão para merecer tratamento jurídica diferenciado. A afirmativa se justifica pelo fato de que as partes envolvidas em uma compra e venda ou em um procedimento de importação ou exploração atuam sempre como profissionais no âmbito de suas atividades fins, estritamente voltadas para os propósitos comerciais de suas empresas. Com esse ânimo, as partes estabelecem quem assumirá o encargo do transporte, o qual se apresenta diretamente vinculado à negociação, como também o respectivo seguro, o local de carregamento e de destino e outras avenças. (...) Se o escopo da lei consumerista é restabelecer o equilíbrio de uma determinada relação, dando proteção à parte que se pressupõe hipossuficiente, não é crível que essa proteção, privada e exclusiva do consumidor, possa ser transferida a terceiro reconhecidamente hipersuficiente, por obra de um contrato de seguro, onde a seguradora tem a nítida intenção de auferir lucro.”

 

Ante a referida relação jurídica, os tomadores dos serviços de transporte de carga devem se resguardar à sombra dos princípios constitucionais acima enumerados e do direito ao serviço adequado, além da possibilidade de responsabilização material e imaterial destacada pelo Código Civil Brasileiro. Vale enfatizar o peso do princípio da não discriminação de usuários, seja quanto ao preço (inclusão pela modicidade tarifária), como quanto à igualdade de direitos de embarque da carga.

4.2.5 Dos usuários do transporte rodoviário de cargas

Nesse título deve-se rememorar a diferença entre serviço público e atividade econômica. Enquanto o serviço público representa uma facilidade de detenção privativa do Poder Público, que, nos casos vistos, pode ser delegada ao particular, mediante regulação, a atividade econômica, ante sua natureza eminentemente privada, fica relegada ao desempenho dos agentes do mercado, de maneira indistinta, que, sem serem regulados, deverão exercer as atividades de acordo com as normas técnicas que orientam o poder de polícia do Estado.

Os serviços de transporte de carga rodoviário, nesse diapasão, não foram incluídos entre os serviços públicos detidos pelo Estado, representando, por isso, atividade econômica a ser desenvolvida no âmbito do mercado aberto, conforme as normas técnicas aplicáveis ao setor. Considerando que, em regra, a contratação do serviço de transporte rodoviário de carga detém, também, características de insumo, por isso estabelece relação onerosa entre o contratante (produtor rural, fabricante de bens de consumo etc.) e o transportador, o contratante desses serviços não se classifica como usuário - ausência de menção na Lei 8.987/95 – como não está resguardado pelo CDC, restando-lhe a tutela do CCB. Contudo, representa evidente exceção à hipótese a contratação de serviços de transporte terrestre de encomenda expressa e mudança, no qual o contratante é consumidor final econômico do serviço de transporte e deve ter aplicado em seu favor o CDC.

Interessante mencionar que o livre mercado não afasta a imprescindível tutela técnica do serviço pelo Estado, cabendo menção à Lei 11.442/07, que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração. As obrigações em relação ao Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RTRN-C constitui mera disciplina legal da atividade e serve de parâmetro para o exercício do poder de polícia do Estado. Por isso, inexiste regulação, mas sim fiscalização técnica.

Por último, cumpre ressaltar que a prestação de serviços de transporte, para sua configuração, necessita de, no mínimo, dois agentes para a realização do negócio jurídico; quando o usuário se confunde com a pessoa do transportador, inexiste direito subjetivo a ser tutelado.

 

5. Conclusão

Com base nas ponderações acima expostas, verifica-se que amplo arcabouço normativo tutela o usuário dos transportes terrestres, que deve receber serviço adequado. Em regra, ao usuário dos transportes de passageiros, aplica-se, além da Lei 8.987/95, 9.074/95 e o CCB/2002, o Código de Defesa do Consumidor, ante a caracterização desses agentes como consumidores nos contratos de prestação de serviço. Incide os mesmos direitos ao usuário dos serviços de transporte associados à exploração da infra-estrutura rodoviária. Forçoso concluir, nesse ponto, que, diante da missão institucional da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que inclusive acarretou na criação de uma Gerência destinada também à Defesa do Consumidor (GEDUC), seria aconselhável uma união de esforços entre a ANTT e as Entidades de Proteção e Defesa dos Consumidores (PROCONs), no intuito de capilarizar o atendimento desses agentes, principalmente em relação aos defeitos na prestação do serviço.

Por outro lado, na prestação de serviços de transporte de carga, ante a natureza onerosa do contrato e a utilização do transporte como insumo para a produção do bem ou serviço (alocação nos mercados consumidores enquanto fator que agrega valor ao produto ou serviço) não se vislumbra relação de consumo, restando ao contratante dos transportes ferroviário de carga os direitos típicos do usuário (Lei 8.987/95, 9.074/95), além do CCB/2002 - ressaltado a garantia de não-discriminação. Para o contratante de serviços de transportes rodoviário de cargas, conforme ponderado, somente deve este se socorrer do CCB/2002, diante da atividade econômica que representa. Importante anotar as exceções relativas aos contratantes de serviço de remessa expressa e mudança.


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Entrevistados

  • Edição da Revista:
    Volume 3 Número 2
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  • Josias Sampaio Cavalcante Júnior
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  • Mário David Esteves Alves
    REFER TELECOM
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    Volume 4 Número 2
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  • Luís Henrique Baldez
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    Volume 3 Número 2
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  • Marcelo Perrupato
    Secretário Nacional de Políticas de Transportes
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    Volume 3 Número 1
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  • Paulo Sérgio Oliveira Passos
    Ministro dos Transportes
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 2
    Novembro de 2010
  • José Roberto Correia Serra
    Diretor presidente da CODESP
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 1
    Maio de 2010
  • Bernardo José Figueiredo Gonçalves de Oliveira
    Diretor Geral da Agência Nacional de Transportes Terrestes - ANTT
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