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Volume 2 Número 2 - Novembro de 2010
ISSN: 2177-6571

IMUNIDADE PARKER V. BROWN: RELEITURA DAS DOUTRINAS STATE ACTION E PERVASIVE POWER NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

THE PARKER V. BROWN IMUNITY: THE STATE ACTION AND PERVADIVE POWER DOCTRINES AND THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM
24/11/2010

Roberto Domingos Taufick
Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE

Resumo

O presente trabalho traz a releitura da doutrina state action ou imunidade Parker v. Brown e visa abordar, de maneira inovadora, a relação entre concorrência e regulação. Pensado a partir da análise da recalcitrante jurisprudência do tribunal concorrencial administrativo brasileiro (CADE) e do parco tratamento dispensado pela doutrina nacional ao tema, o presente estudo visa trazer análise alternativa àquela introduzida pelo professor Calixto Salomão Filho, suscitando divergências entre a sua abordagem e as conclusões extraídas diretamente da leitura dos marcos jurisprudenciais norte-americanos. Abordando dúvidas construídas ao longo de mais de uma década da aplicação do instituto, no Brasil, a partir da solitária leitura da sua obra Regulação da Atividade Econômica – princípios e fundamentos jurídicos, o estudo abarca a relação dicotômica entre a natureza da atividade de órgãos de Estado – como aqueles que integram o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – e a premência da implementação de políticas públicas instrumentalizadas pelas agências reguladoras, a partir da ótica prática da Suprema Corte norte-americana – formuladora da imunidade Parker v. Brown.     

Palavras-chave: doutrina state action, imunidade parker v. brown, concorrencia e regulacao, politicas publicas, supervisao ativa.
Abstract

This work revalues the state action doctrine or Parker v. Brown immunity as well as brings a new perspective to the relationship between competition and regulation. Conceived from the analysis of the Brazilian antitrust agency’s unstable jurisprudence and the scarce study dedicated by Brazilian scholars on the subject, this article aims at forging a new alternative to the analysis meritoriously introduced in Brazil by professor Calixto Salomao Filho more than a decade ago - bringing a core debate on how his conclusions may diverge from the reading of the American leading cases as well as tackling concerns built up along one decade applying the state action doctrine from a standpoint that stands doctrinally untouched. This piece of work also stresses how the Brazilian understanding of the aforementioned relationship between competition and regulation was deeply influenced by the way that an interested party (the Brazilian competition tribunal itself: CADE) conceived of its own jurisdiction. The relationship between public policies and non-political acts is studied herein according to US Supreme Court rulings which may help identify elements that can be useful in understanding if and how the state action doctrine or Parker v. Brown immunity can be applied in Brazil.

Keywords: state action doctrine, Parker v. Brown immunity, competition and regulation, public policy (state action), active supervision.

1 INTRODUÇÃO ÀS DOUTRINAS STATE ACTION E PERVASIVE POWER: a leitura da doutrina e a jurisprudência brasileira

1.1 Da análise doutrinária

A tradução da doutrina state action ou imunidade Parker v. Brown para o contexto brasileiro foi realizada pela obra Regulação da Atividade Econômica – princípios e fundamentos jurídicos do professor Calixto Salomão Filho, cuja leitura tem sido debatida nos julgados do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), quando se fala na interface entre concorrência e regulação. A sua abordagem retrata se e quando a regulação substitui o sistema concorrencial na análise (i) das condutas praticadas pelos agentes regulados ou das (ii) estruturas aprovadas em outorgas regulatórias – podendo, por esse motivo, ser retratada como uma abordagem excludente. Segundo o autor, das três intervenções do Estado no domínio econômico (agente direto, agente fiscalizador e agente normativo), apenas a atuação direta do Estado na atividade econômica seria objeto certo de análise concorrencial, ficando as intervenções políticas (fiscal e normativa) sujeitas à natureza da atividade fiscalizadora ou normatizada.

Relata Salomão Filho que essa análise incidental quanto à ação política se daria pela presença concomitante de dois elementos: (i) a constatação da existência, ou não, de uma política expressa de substituição da competição pela regulação e (ii) a existência, ou não, de ativa e constante supervisão do cumprimento das obrigações regulatórias pelo administrado. Na interpretação do autor – e isso é particularmente importante -, seria insuficiente a presença isolada de uma lei atribuindo poderes a determinada agência para determinar as variáveis empresariais básicas, como preço e quantidade produzida. O primeiro motivo pelo qual esse trecho é importante está no paradoxal entendimento do próprio autor, manifestado mais adiante em sua obra, ao tratar da realidade brasileira, no sentido de que a manifesta intenção de substituição da concorrência pela regulação pode ser substituída pela outorga legal ao regulador de poderes para influir nas variáveis fundamentais de orientação da vida da empresa. A isso se some a sua conclusão de que “os atos fiscalizatórios ou normativos de agências (autarquias) não podem ser objeto de discussão nos órgãos concorrenciais”, mas apenas os atos dos administrados e “na medida em que o controle concorrencial[pelo regulador]não tenha sido extenso ou profundo o suficiente”. O segundo motivo que torna esse trecho relevante está em fundamentar a necessidade de recorrermos à leitura dos precedentes norte-americanos para esclarecer tal paradoxo e outros tantos com que nos depararemos na análise jurisprudencial - releitura que faremos no item 2 abaixo.

Observe-se, contudo, que as conclusões de Salomão Filho vão além de uma regra geral: o autor observa que, pela aplicação dos critérios acima expostos, no sistema brasileiro, apenas a outorga de concessões estaria coberta pela doutrina da state action. Essa conclusão é extremamente importante por permitir inferir que, para o professor do Largo de São Francisco, a substituição da concorrência pela regulação é maciça, ou seja, não pode se restringir a um ou mais pontos de determinada relação entre agente e órgão regulador. Dessa forma, adotada essa leitura, sob nenhum aspecto contratos de concessão, incluindo a sua outorga, poderiam ser objeto de análise pelo CADE. Por outro lado, dado o paradoxo apontado no parágrafo anterior (quanto à determinação das variáveis econômicas fundamentais), fica em aberto a possibilidade de aplicação da teoria às autorizações e permissões, dado que, embora disciplinadas fora dos contratos administrativos, poderiam, em diversas hipóteses, estar sob ativa regulação de alocação espacial, precificação e quantidade produzida (determinação das variáveis empresariais básicas) – de que tem sido exemplo o setor de telecomunicações, após a privatização.

Salomão Filho aponta, finalmente, que o tratamento utilizado para as agências federais norte-americanas é diferenciado em relação àquele dispensado às agências estaduais, em função de excluir a discussão acerca do conflito federativo entre o poder político local para regular e a soberania do legislativo federal em impor a legislação concorrencial. A discussão, embora análoga, teria dado origem, na esfera federal do conflito, à doutrina da pervasive power – em oposição à state action (esfera estadual do conflito) -, na qual o afastamento da concorrência pela regulação dependeria, tão-somente, de constatar-se a existência de uma política expressa de substituição da competição pela regulação.

A doutrina pervasive power restringe o afastamento da norma concorrencial a apenas dois casos. Na primeira hipótese, o poder regulatório substituiria a concorrência (poder extenso). No segundo, o poder atribuído à agência reguladora incluiria (mas não afasta) a análise concorrencial (poder profundo). Segundo o autor, a ausência do requisito da supervisão ativa na doutrina pervasive power, apontada no parágrafo anterior, demonstraria a maior confiança da Suprema Corte na atuação das agências reguladoras federais. Contudo, considerando que a presunção quanto à supervisão ativa pelas agências federais é relativa (iuris tantum), as análises de substituição da concorrência pela regulação, segundo as teorias state action e pervasive power, terminam, em última instância, por se equivaler.

Registre-se, por derradeiro, que a ausência de um aceso debate doutrinário acerca da aplicabilidade da state action ao direito brasileiro tem legado ao entendimento jurisprudencial do próprio CADE a análise da referida adequação e, por subseqüente, levado à indagação quanto ao seu grau de imparcialidade para definir a extensão da sua própria competência. A análise dos julgados do tribunal administrativo, a que daremos vazão no subitem 1.2 abaixo, vem, nesse esteio, para elucidar os elementos incorporados nos arrazoados dos Conselheiros, analisar a forma com que a doutrina tem sido invocada e, mais adiante, avaliar a sua conformação à doutrina Parker v. Brown tal qual concebida pela Suprema Corte dos EUA (item 2 abaixo).

1.2 Da Jurisprudência do CADE

Embora sejam freqüentes os casos de atuação do CADE em mercados regulados, permanecem pouco freqüentes os casos nos quais o CADE tenha sido levado a discutir, de maneira extensa, a própria eficácia da atuação da agência reguladora e, por assim dizer, decidir contrariamente ao ente regulador ou na ausência da sua intervenção. Mesmo dentre esses casos, são lembrados, com maior freqüência, em razão da sua influência para o desenvolvimento do posicionamento do Conselho, os casos abaixo descritos – os quais, por esse motivo, podem ser considerados leading cases no desenvolvimento do tema. É sempre válido recordar, porém, que a análise do “entendimento cadiano” abaixo ilustrado deve ser realizada tendo-se em mente a parcialidade que vicia, ex ante, a leitura que o tribunal concorrencial brasileiro faz da sua própria esfera de atuação.

No Ato de Concentração (AC) nº 08012.155/97-97, em que se discutiu a aquisição de 41,73% do capital ordinário e 26,85% do capital total da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) pelo consórcio Valepar, foi debatida a supervisão ativa das concessões das Estradas de Ferro Vitória-Minas (EFVM) e Carajás (EFC) pelo Ministério dos Transportes, em especial quanto ao transporte de minérios no Sistema Sul, onde a CVRD transporta para os seus concorrentes. A análise demonstrou que a supervisão era rasa e, ao analisar a competência do CADE para atuar em setores regulados, o então Conselheiro Thompson Almeida Andrade concluiu (i) que o edital de licitação e o contrato de concessão devem estar conformes às leis (incluindo a concorrencial) e, por esse motivo, deve o CADE realizar o controle de legalidade dos atos e contratos administrativos e (ii) que não há respaldo legal para excluir a apreciação do CADE em determinados mercados. Nesse sentido, decidiu pela celebração de TCC prevendo termos aditivos ao contrato de concessão, incluindo determinações do TCU que o órgão regulador não logrou cumprir e obrigações de obediência à norma reguladora do setor de transporte ferroviário de carga. Observe-se que a análise do relator, de 30 de maio de 2000, fundamentou-se no Direito Administrativo, mas não considerou a concorrência ou o conflito de competências entre regulação e concorrência. Três elementos se destacam nessa análise intrusiva: (a) a intervenção do CADE em um contrato de concessão, a (b) interpretação da norma reguladora e (c) a execução de obrigação imposta pelo TCU ao regulador. Longe de ser abandonada, essa lógica de intervenção do órgão concorrencial veio a ser mantida em decisões seguintes.

Assim, em janeiro de 2001 o CADE analisou o Processo Administrativo (PA) nº 08012.006207/98-48, instaurado para apurar suposta prática anticoncorrencial de fixação de preços abusivos pelas representadas Riogás S/A e Companhia Estadual de Gás do Rio de Janeiro – CEG. Após trazer à baila a leitura de Calixto Salomão Filho a respeito da state action, o então Conselheiro Afonso Arinos de Mello Franco entendeu que a doutrina norte-americana era aplicável ao ordenamento brasileiro e analisou o próprio sistema de tarifação do ente regulador, verificando se obedecera à regulação do setor e à razoabilidade econômica. Aqui, importa frisar que a própria falta de consistência no posicionamento externado na doutrina que, conforme apontamos, é contraditória nesse particular, facilitou a adoção desse posicionamento pelo Conselho. De qualquer modo, o julgado traz o questionamento acerca da competência do CADE para, eventualmente, indispor-se contra uma forma de tarifação, caso o regulador supervisione, ativamente, o mercado regulado, mas a regulação, como política pública, adrede afaste, ainda que pontualmente, a concorrência no setor.

Por sua vez, em fevereiro de 2003, por ocasião da análise do PA nº 08000.021660/96-05, envolvendo empresas de transporte terrestre, o então relator Fernando Oliveira Marques observou que, segundo a state action, na omissão do órgão regulador, poderia o CADE atuar para suprir a carência de supervisão ou própria carência de regulamento adequado – o que implica margem para a própria análise da adequação da regulação aos anseios concorrenciais. Nesse mesmo sentido se posicionou o Conselho no julgamento da Representação 07/93, movida pela Câmara das Empresas Brasileiras de Capital Nacional (CEBRACAN) em face de Rodoviária Nacional Ltda. (RODONAL), quando o voto vogal do então Conselheiro Antônio Fonseca fez observar que, além de inerte, o órgão regulador não gozava de independência ou reputação para regular. Aqui, novamente, por força do PA nº 08000.021660/96-05, o CADE deixa antever a possibilidade de atribuir a si próprio o poder de regular caso julgue, a seu critério, que a política pública externada pela atuação do regulador – ou, em última instância, legada pelo legislador – não se coadune com os valores concorrenciais. Tratar-se-ia de adequar a regulação aos princípios concorrenciais, não só elegendo a concorrência como um bem em si, mas invocando a sua primazia sobre qualquer política pública lançada por um poder soberano – seja o Executivo, seja o Legislativo.

Trata-se, justamente, do legado do Conselho por ocasião da apreciação da Averiguação Preliminar (AP) nº 08000.025952/96-54, em que a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE). Representou em face do Departamento de Aviação Civil (DAC). Naquela oportunidade, a então Conselheira Lucia Helena Salgado e Silva observou que o CADE teria poderes para expedir recomendações ou solicitar providências para o cumprimento da lei concorrencial caso verificasse que a norma regulatória fosse incompatível com os princípios impostos pela concorrência no mercado.

Essa linha foi, excepcionalmente, criticada pelo então Conselheiro Celso Fernandes Campilongo, que, em junho de 2001, aproveitou o PA nº 53500.000359/1999, em que foi analisada a criação de dificuldade à entrada, ao funcionamento, ou ao desenvolvimento de empresa pelas representadas TV Globo Ltda. e TV Globo São Paulo Ltda., para (i) apresentar a sua discordância quanto ao voto do relator João Bosco Leopoldino da Fonseca, que interpretou a norma reguladora de forma diversa da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) – a seu ver, extrapolando a competência do CADE – e (ii) afirmar que cabe ao órgão regulador interpretar as normas reguladoras. De todo modo, com supedâneo na própria lei reguladora (Lei Geral de Telecomunicações - LGT), avalia que o CADE é competente para analisar condutas in concreto, mas não para emitir ou interpretar normativos in abstracto.

A excepcionalidade do entendimento de Campilongo, que se alinha, diretamente, ao pensamento de Salomão Filho quando à questão da competência, ou não, do CADE para apreciar os atos de outra agência, ficou clara não só naquele julgamento, mas também nos julgados que se seguiram. Em setembro de 2004, o então Conselheiro Roberto Pfeiffer, em seu voto-vista ao PA nº 08000.007754/95-28, em que foram representadas a Associação Brasileira de Agências de Viagens do Distrito Federal (ABAV/DF) e o Sindicato das Empresas de Turismo do Distrito Federal (SINDETUR/DF), observou que a jurisprudência do CADE tem-se encaminhado no sentido de entender que essa autarquia deve atuar sempre que a agência reguladora é omissa em sua atividade normativa, de supervisão e de aplicação do regulamento. Ademais, o Conselho tem entendido que, mesmo na existência de ente regulador atuante, o CADE tem competência para julgar questões regulatórias que acarretem efeitos, ainda que potenciais, sobre a concorrência. Em outras palavras, trata-se dos princípios da onipresença e inafastabilidade da atuação do CADE, ambos desenvolvidos no seio do próprio Conselho.

Esse entendimento manteve-se ao longo da última formação do Conselho, de que é claro exemplo o caso da Taxa de Segregação e Entrega de Contêineres (THC2), em que foi analisada a acusação de abuso de posição dominante por parte dos terminais portuários de contêineres localizados na área de influência do porto de Santos, ao estabelecerem cobrança para liberação de contêineres (justamente a THC2) em prejuízo dos recintos alfandegados independentes e dos consumidores. Novamente citando Calixto Salomão Filho, o CADE interveio em setor concedido a partir de uma interpretação normativa destoante daquela realizada pelo órgão com expertise no setor. Interessa observar que o então Conselheiro Prado analisou que, de forma genérica, a regulação não afastava a concorrência, sem se preocupar, especificamente, com a fixação do preço, que, em se tratando de variável essencial do mercado, denotaria a real intenção de excluir a formação natural de preços pela concorrência. E, apesar dos esforços envidados pelo Conselho para provar que a THC2 era preço, e não tarifa, essa alteração quanto à natureza não altera o fato de que o valor, preço ou não, era objeto de fiscalização da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e, mesmo assim, foi objeto de discussão não só no caso THC2 (referente ao Porto de Santos), mas, igualmente, em decisão anterior, quanto ao Porto de Salvador. Ressalte-se que o próprio voto condutor do então Conselheiro Cueva apontava que o CADE não era revisor de políticas públicas, o que realça a dificuldade em identificar os elementos que o CADE considera integrantes, ou não, de uma política pública e sobre os quais pode intervir. Aliás, trecho do voto do então Diretor-Geral da ANTAQ, transcrito pelo então Conselheiro Ricardo Cueva, derruba o argumento de que a decisão da ANTAQ não teria analisado o elemento concorrencial. Importa indagar, porém, se, na mesma linha da dúvida deixada por Calixto Salomão Filho, a competência para regular bandas de preços e tarifas e o efetivo exercício dessa competência não são já suficientes, per se, para comprovar a intenção de, nesse particular, substituir-se a concorrência pela regulação.

Por derradeiro, em junho de 2008 o CADE julgou o seu mais recente e maior leading case abarcando a relação entre concorrência e regulação: o AC nº 08012.003267/2007-14, o denominado caso VARIG/GOL. A principal discussão se situou em torno da competência do CADE para distribuir slots – competência que tanto a Procuradoria-Geral do CADE (ProCADE), quanto o representante do Ministério Público Federal (MPF) junto à autarquia, entenderam não ter sido atribuída ao Conselho. Esse entendimento foi contrariado pelos Conselheiros. O então Conselheiro Prado, recorrendo, novamente, ao professor Calixto Salomão Filho, observou que a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), como outras agências, tem poder formalmente profundo, embora não seja extenso. Contudo, embora formalmente profundo, a atuação da agência reguladora na seara concorrencial não seria qualitativamente satisfatória (por lhe faltar capacidade técnica em antitruste) e efetiva (não há histórico de aplicação de análise concorrencial). Segundo Prado, não caberia ao CADE normatizar ou redistribuir slots, mas não fugiria da sua competência exigir a devolução de slots pelas requerentes no AC em função de entender, na mesma linha de Pfeiffer no PA nº 08000.007754/95-28, que o CADE tem competência para julgar questões regulatórias que acarretem efeitos, ainda que potenciais, sobre a concorrência (denominadas de falhas do regulador pelo ex-Conselheiro). Esse entendimento levou a que o Conselheiro Furquim concluísse, em voto divergente, pela necessidade de devolução de slots, para a restauração da efetiva concorrência no setor. Como pontos nevrálgicos dessas conclusões ficam duas indagações: (i) se o fato de haver uma agência concorrencial não impede que reguladores possam analisar questões concorrenciais (poder profundo), como poderia o CADE entender pela sua incapacidade [da agência reguladora] de análise concorrencial sem analisar o histórico dos seus julgados e da própria lei que autorizou o regulador a proceder à análise concorrencial?; e (ii) a intervenção in abstracto pelo CADE, alterando regulamentos do ente regulador, difere, materialmente, de uma intervenção incidenter tantum desautorizando a interpretação prevista no regulamento?

1.3 Da necessidade de revisitar a doutrina

Conforme se observa, a jurisprudência do CADE tem evoluído no sentido de uma atuação abrangente do antitruste em setores regulados. Esse posicionamento, embora muitas vezes não tenha alterado o desenho final da decisão do CADE, tem-se tornado, paulatinamente, mais relevante para definir em que grau a atuação do CADE não representa uma revisão da análise regulatória ou a indevida intromissão da delimitação de uma política pública definida por ao menos um dos três poderes soberanos.

Da análise da doutrina e da jurisprudência se observa que a atuação da concorrência no setor regulado, onde admitida, tem sido entendida como ampla o suficiente para substituir a regulação. Ambas, assim, têm caminhado no sentido de servir à substituição da regulação pela concorrência, em sentido inverso àquele que o professor Calixto Salomão Filho afirma terem feito doutrina e jurisprudência norte-americanas, em que a state action representa isenções concorrenciais.

Embora se tenha pautado, genericamente, pela leitura de Calixto Salomão Filho – único doutrinador brasileiro repetidamente citado na análise da matéria -, o entendimento do CADE tem optado, habitualmente, pela interpretação mais abrangente da sua competência, ainda que isso represente fugir ao entendimento doutrinário corriqueiramente citado nos votos do Conselho. Exemplo disso está na própria Súmula 3 do CADE, que fixa requisitos para a análise de licitações de concessões – caso expressamente citado por Salomão Filho como de isenção concorrencial plena.

Os julgados permitem concluir, ainda, que o CADE tem alçado a proteção da concorrência a um patamar superior à definição de políticas públicas por um dos poderes soberanos. Observa-se, ainda, a invocação da competência para analisar não só a existência de uma ativa supervisão, mas para julgar a própria qualidade da regulação. O CADE tem interpretado a exclusão da concorrência como função do não exercício de uma atribuição que (i) ou não foi dada ao regulador, (ii) ou foi dada, mas não pode ser exercida de forma satisfatória – excluindo a possibilidade de que se possa ter tido o legítimo propósito de afastar a concorrência onde ela pudesse ser um empecilho a uma política pública efetivamente fiscalizada pelo regulador. A análise tem falhado, ainda, ao evitar a análise do conflito entre a competência concorrencial, genérica, e a regulação específica a determinado setor, conflito esse consubstanciado no brocardo latino lex specialis derogat legi generali (lei especial derroga a lei geral).

Nesse sentido, a fim de verificarmos se a jurisprudência norte-americana traz esclarecimentos à leitura inaugural do professor Calixto Salomão Filho que possam auxiliar (i) a uniformização dos entendimentos no CADE ou (ii) a adoção de leituras mais flexíveis acerca dos nichos concorrencial e regulador, entendo necessário embeber da fonte e passarmos pela releitura dos leading cases norte-americanos que ensejaram construção doutrinária tão invocada e, propriamente, em função das inumeráveis interrogações ainda pendentes, certamente pouco compreendida.

 

2 O LEADING CASE PARKER V. BROWN: formação e consolidação jurisprudencial da imunidade concorrencial

2.1 Da imunidade da política de Estado, dos poderes amplos e da fiscalização profunda – do estudo dos leading cases norte-americanos

Parker v. Brown (317 U.S. 341 (1943)) resulta de uma ação movida a fim de sustar um programa de quotas agrícolas promovido pelo estado da Califórnia sob alegação de que o programa colidia com as leis concorrenciais federais. O programa impugnado – o California Agricultural Prorate Act -, visando manter a higidez agrícola do estado e evitar desperdício na comercialização de produtos agrícolas, foi formulado para a comercialização da safra de uvas-passas de 1940 e realizava-se dentro dos parâmetros do Agricultural Marketing Agreement de 1937, de âmbito federal, contando com o apoio financeiro da União. A ementa do acórdão da Suprema Corte dos Estados Unidos resume que não caberia a ela intervir por três razões precípuas: (i) a ação do estado decorre de uma política pública (state action) emergencial, dada a situação de excepcionalidade por que passava a agricultura do estado da Califórnia; (ii) o poder executivo federal, por meio do Ministro da Agricultura, vinha cooperando com o programa e (iii) o programa se casa com preocupação encampada, também, pelo poder legislativo federal, por meio do Agricultural Marketing Agreement de 1937.

Segundo o Ministro-Presidente da Suprema Corte Stone, duas questões deviam ser, inicialmente, levantadas: se havia ofensa (i) ao Sherman Act (legislação concorrencial) ou (ii) ao Agricultural Marketing Agreement de 1937 (legislação regulatória federal). Segundo o tribunal distrital, a norma feria a legislação concorrencial, razão pela qual foi dado ganho de causa ao autor da ação (apelado perante a Suprema Corte) naquela instância.

Segundo apurado pelo tribunal a quo, quase toda a uva-passa consumida nos Estados Unidos e quase metade daquela produzida no mundo adviria da Raisin Proration Zone n.1, sendo certo que entre 90-95% da produção da Califórnia era exportada para outros estados dentro dos Estados Unidos ou para outros países. O produtor vendia as uvas-passas para armazenadores, que as mantinham guardadas até que houvesse revenda para agentes sitos, especialmente, em outros estados e outros países. O tempo de armazenamento poderia levar de dias a dois anos, a depender da quantidade estocada e da demanda. Eram igualmente freqüentes contratos futuros. Contudo, nos últimos anos, foi verificado terem-se tornado cada vez mais comuns sobras da safra anterior.

O California Agricultural Prorate Act autorizava o estabelecimento de programa para comercialização de produtos agrícolas produzidos no estado, reduzindo a competição entre os produtores e mantendo os preços na distribuição do produto aos armazenadores. A norma autorizava a criação de uma comissão de nove membros, oito deles indicados pelo governador para mandatos de quatro anos, com a necessária aprovação pelo Senado e compromisso juramentado.

Mediante requerimento de dez produtores dentro de determinada zona de produção, após audiências públicas e estudos econômicos demonstrando que o estabelecimento de um programa evitaria desperdício da produção e conservaria a higidez do estado sem levar ao enriquecimento injustificado dos produtores, a comissão poderia autorizar a criação do programa. O estabelecimento do programa para uvas-passas determinava a sua classificação, de acordo com a qualidade, em padrão inferior e superior – classificação essa que definia a destinação e o valor de venda do produto.

Segundo o Ministro Stone, a leitura do Sherman Act levava a que o programa só fosse reputado ilegal se derivado de contrato, combinação ou conspiração de entes privados. A decisão do Congresso Nacional, no exercício da atividade legislativa, não se enquadra nessa definição. Ademais, na democracia norte-americana, por força da Constituição, a soberania de um estado só pode ser retirada pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, não havia, nesse caso, tampouco em qualquer outro caso na história norte-americana, hipótese em que o legislativo tentasse restringir o poder político.

Segundo Stone, o estado não pode conferir imunidade concorrencial autorizando a violação ao Sherman Act (Northern Securities Co. v. United States, 193 U. S. 197, 193 U. S. 332, 193 U. S. 344-47). Por outro lado, o estado ou o município certamente podem ser partes em acordos que ferem o Sherman Act (Union Pacific R. Co. v. United States). Contudo, o Sherman Act se volta contra ações dos particulares e não contra políticas públicas (individual X state action). E é o estado, por meio da comissão, que adota e fiscaliza o programa, impondo sanções para a consecução de uma política pública criada sob o amparo legislativo. O programa, portanto, não representaria um acordo ou conspiração, mas ato soberano, imposto como ato de governo que a norma antitruste não coíbe.

A fim de determinar se o estado tinha competência para implementar uma política com impacto inter-estatal, volta-se Stone para demonstrar o interesse local em proteger a indústria de uvas-passas. Os dados juntados no processo permitiram concluir que entre 1914-1920 os preços das uvas da Califórnia, incluindo uvas-passas, subiram enormemente, alcançando seu pico em 1921. Houve, então, um enorme acréscimo de área plantada, acompanhado pela redução de preços. O pico de produção foi alcançado em 1938. Desde 1920, 30-50% do total produzido têm sido armazenados para a venda junto com a safra subseqüente (carry over), mas foi a partir de 1934 que, com a baixa de preços e o excesso de área plantada, tornou-se economicamente inviável a venda do produto. Estudiosos do setor indicam que as vendas passaram a ocorrer abaixo dos custos de produção. Desde a década de trinta havia sinais de programas federais voltados a minimizar os danos causados aos agricultores pela baixa do preço.

O julgamento de Parker v. Brown trouxe importantes contribuições ao antitruste norte-americano. A maior parte dos achados faz alusão à separação entre as competências regulatórias estaduais e federais. Contudo, a sua singular contribuição aos estudos dos pontos de enfrentamento entre concorrência e regulação, no Brasil, não é trivial: trata-se da isenção antitruste conferida aos poderes legislativo e executivo no ensejo da soberana implantação e implementação de políticas públicas. E, mesmo sendo natural, no direito brasileiro, por determinação legal, enfrentar atos anticoncorrenciais praticados por agentes estatais, seguindo a doutrina state action, essa submissão só se estenderia aos entes de mercado sujeitos ao direito privado, como empresas públicas e sociedades de economia mista – tipologias que o direito norte-americano desconhece. O ato do regulador, ato público em sentido estrito, estaria coberto pela doutrina inaugurada em Parker v. Brown.

A segunda grande contribuição ao tema veio de United States v. RCA(358 U.S. 334 (1959)), que consagra a doutrina da pervasive power. Relata o Ministro-Presidente Warren que as apeladas Radio Corporation of America (RCA) e National Broadcasting Company eram rés em ação cível antitruste movida pelo governo dos EUA, cujo principal ponto de controvérsia versava acerca de se a aprovação pela Federal Communications Commission (FCC) de um acordo entre as apeladas – para trocar a estação de televisão de Cleveland pela de Filadélfia – barrava, ou não, a ação antitruste independente do governo em face dessa mesma operação. A aprovação da operação pela FCC, apontam os autos, teria passado pela análise de elementos concorrenciais. Todavia, aponta Warren, seria necessário proceder a uma análise da história legislativa do papel da FCC.

Procedendo a essa análise, conclui o Ministro que a história legislativa da FCC não confere poder de análise concorrencial a esse órgão, razão pela qual o recurso à ação antitruste independente é reputado válido. A relevante contribuição de United States v. RCA centra-se em que a análise regulatória não preclui a análise concorrencial onde o poder de decisão da agência reguladora não for amplo o suficiente para afastar o direito concorrencial ou profundo o suficiente para abarcar decisões em sede concorrencial. Observe-se que a decisão deve pautar-se em determinação legal que defina se o regulador tem ou não poder para decidir sob aspectos concorrenciais em setores nos quais a concorrência não foi excluída.

Em Goldfarb v. Virginia State Bar (421 U.S. 773 (1975)), um casal interessado em adquirir uma casa no condado de Fairfax – e cujo financiador demandou a contratação de um seguro – entrou com ação em face das ordens de advogados de Fairfax e Virginia ao se deparar com a necessidade de que a apólice de seguro fosse analisada por um advogado e ao perceber que nenhum advogado aceitava trabalhar por menos que os honorários mínimos fixados pela ordem dos advogados de Fairfax e executada pela ordem dos advogados da Virginia (price-fixing). Embora o tribunal distrital tenha dado ganho de causa aos autores, o tribunal de apelação reverteu a decisão, ao entender que as ações da ordem dos advogados eram imunes enquanto políticas públicas (state action), nos termos da doutrina Parker v. Brown, assim como em função de se tratar de profissão liberal e pelos efeitos locais da decisão, que excluiriam o caso do alcance do Sherman Antitrust Act.

A aludida decisão foi, finalmente, revertida pela Suprema Corte, que entendeu que consistia violação ao Sherman Act a fixação de preços mínimos (e não a sua mera sugestão), cuja desobediência era severamente sancionada. O tribunal entendeu, ainda, (i) que a atividade de consultoria e o financiamento da casa própria eram praticados além dos limites do estado da Virginia, assim como (ii) que profissionais liberais prestam serviço, cuja contraprestação é o pagamento em dinheiro – o que representa mercancia. Estudando o histórico do Sherman Act, concluiu-se que o Congresso Nacional não teria garantido qualquer isenção concorrencial aos profissionais liberais, o que mantinha a aplicação do Sherman Act.

Mas, acima de tudo, a Suprema Corte observou que as atividades das rés não estavam isentas do Sherman Act enquanto state action, no sentido examinado em Parker v. Brown. (i) Nem a Suprema Corte do estado da Virginia, tampouco qualquer lei do estado da Virginia tratava de tal atividade como política pública; (ii) embora  a ordem dos advogados estadual possa emitir normas éticas, a Suprema Corte não as aprovava; (iii) a isenção concorrencial demanda política pública gerenciada por um estado agindo soberanamente, não se admitindo que se trate apenas de uma medida instigada por uma política pública. Em Goldfarb, portanto, a ação disciplinar da ordem dos advogados insere-se como atividade de cunho privado e, como tal, sujeita ao Sherman Act. A grande contribuição de Goldfarb está expressa nos itens (i) e (iii) – ou seja, em haver política pública efetivamente levada a cabo por poder soberano – e reside em tornar mais claro o ponto que suscitamos em Parker v. Brown.

Em United States v. NASD, Inc. (422 U.S. 694 (1975)), a Suprema Corte afirmou a imunidade concorrencial conferida à Securities and Exchange Commision pelo Maloney Act de 1938 e pelo Investment Company Act de 1940, seguindo o entendimento da corte distrital. Em jogo, estava a análise de práticas de venda e distribuição empregadas na comercialização de valores mobiliários de fundos mútuos. A ação trazia a alegação de que os réus-apelados combinavam restringir a oferta e fixar os preços de revenda das ações dos fundos mútuos em transações no mercado secundário por meio de corretor. Embora autor e ré tenham concordado em que o §22(d) do Investment Company Act demandava que os corretores uniformizassem preços no mercado primário, o autor entendeu que a isenção não se estendia ao mercado secundário, devendo-se cingir, tão-somente, ao estritamente necessário, ou seja, ao segmento a que a lei expressamente estabeleceu imunidade.

Contudo, na linha do tribunal distrital e após detalhado estudo do histórico do Investment Company Act, a fim de buscar a mens legis, a Suprema Corte concluiu que o objetivo dos normativos regulatórios era incompatível com o Sherman Act e representava clara isenção concorrencial.

É importante observar, contudo, a linha da divergência apontada pelo Ministro White ao voto do Ministro Powell – em que foi seguido pelos Ministros Douglas, Brennan e Marshall. Discordando do tribunal distrital, observou, concordando com o autor da ação, que isenções concorrenciais são interpretadas de forma estrita e não devem ser estendidas além daquela conferida pela letra da lei. A imunidade não decorre, automaticamente, do mandato legal para que a agência reguladora autorize um ato que passará, também, pela análise concorrencial. Nesse mesmo sentido, cita que, em United States v. Philadelphia National Bank, 374 U. S. 321, 374 U. S. 350-351 (1963), entendeu-se que, em relações governadas primariamente por questões negociais, em contraposição à coerção regulatória, os tribunais devem estar hesitantes em interpretar que o Congresso objetivava substituir as normas concorrenciais. Ademais, em United States v. McKesson & Robbins, Inc., 351 U. S. 305, 351 U. S. 316 (1956), fez-se entender que o afastamento da norma concorrencial em virtude de conflito com norma regulatória não é de praxe, tendo sido aceito, tão-somente, em casos de clara incompatibilidade entre as regras regulatória e concorrencial.

Apoiando-se nos precedentes da Suprema Corte, concluiu que, ausente uma expressa imunidade concorrencial conferida normativamente pelo Congresso, a imunidade só poderia ser observada se o Congresso, claramente, substituísse as leis concorrenciais e o modelo de concorrência vigente por um regime competitivo diferenciado, definido por regras específicas fiscalizadas por uma agência administrativa, as quais purgam da ilegalidade determinados atos de outro modo considerados violações concorrenciais. Essa situação, a seu ver, não se casaria com o caso sob análise.

Embora vencido em suas conclusões, os fundamentos aplicados por White não divergem daqueles que embasaram as conclusões dos demais membros do tribunal e devem ser tomados como parte substancial da contribuição do caso para os nossos estudos. De NASD retiram-se (i) a excepcionalidade do afastamento da competência do órgão concorrencial; (ii) a possibilidade de se afastar, parcialmente, a concorrência em determinado setor, com relação a determinados atos, apenas; (iii) a possibilidade de que a norma seja interpretada além do seu sentido gramatical (mens legis) para que a isenção concorrencial seja ampliada. 

Em Cantor v. Detroit Edison Co. (428 U.S. 579 (1976)), a ré (Detroit Edison Co.) era uma monopolista na distribuição de energia elétrica no sudeste de Michigan, que fornecia aos seus clientes, sem qualquer acréscimo, 50% do total das lâmpadas comuns mais freqüentemente utilizadas pelos consumidores – prática que precede a própria regulação do setor elétrico. Além de aprovada pela Comissão de Serviços Públicos de Michigan dentro da estrutura tarifária da concessionária, essa prática não poderia ser alterada sem que houvesse aprovação, pela Comissão, de pedido da ré nesse sentido. O autor da ação, varejista no mercado de lâmpadas, reclamara que a ré usava do seu monopólio no mercado de distribuição para reduzir a concorrência no mercado de lâmpadas, em desacordo com o Sherman Act. O tribunal distrital entendeu que havia isenção concorrencial, posicionamento confirmado pelo tribunal de apelação. A Suprema Corte, contudo, decidiu que a concomitante sujeição de determinados produtos à regulação e à concorrência não significa, necessariamente, que se deva obedecer a padrões inconsistentes, tampouco que a norma federal deva sujeitar-se à estadual. Mas, acima de tudo, mesmo presumindo que o Legislativo não desejava que as normas concorrenciais se aplicassem a áreas reguladas por um estado, a aplicação da norma concorrencial não seria vedada em um setor desregulado como o mercado de lâmpadas elétricas. Ou seja, Cantor afirma que a isenção concorrencial deve ser excepcional e se limita aos setores regulados, sendo equivocado acolher, sob o guarda-chuva regulatório, para isentar da aplicação das normas concorrenciais, setores sujeitos à livre-concorrência e para os quais não há uma política pública desenhada pela Administração. A diferença básica está em que, em Parker v. Brown, a política agrícola era pública (state action), ao passo que, em Cantor, fala-se de uma ação privada (private action) autorizada pelo estado.

Segundo a Suprema Corte, a distribuição de eletricidade era amplamente (pervasively) regulada pela comissão, mas a distribuição de lâmpadas era desregulada. A lei de criação da comissão não tratava das lâmpadas, tampouco havia qualquer outra norma que o fizesse. Desse modo, a aprovação pela Comissão de decisão da ré em manter o programa relativo às lâmpadas não implementava qualquer política governamental relativa a lâmpadas, de tal sorte que o tribunal entendeu que o estado era neutro quanto à permanência do programa.

Retomando a discussão em Goldfarb, o caso Bates v. State Bar of Arizona (433 U.S. 350 (1977)) traz a discussão acerca da vedação de publicidade em serviços de profissionais liberais. No caso em questão, os apelantes eram advogados membros da ordem dos advogados do Arizona que foram processados por essa instituição sob a alegação de violarem a norma da Suprema Corte do estado, que proibia os advogados de fazerem publicidade em jornais e outras mídias. A Suprema Corte do Arizona condenou os advogados, defendendo se tratar de um ato soberano do estado do Arizona. A Suprema Corte do EUA concluiu que se tratava de um caso no qual havia a manifestação soberana do estado do Arizona por seu judiciário e que havia ativa supervisão de uma atividade eleita para supervisão do estado, no sentido de Goldfarb - o que garantiria a isenção concorrencial. Contudo, por ferir a Primeira Emenda à Constituição dos EUA (freedom of speech), a Suprema Corte entendeu que a propaganda era admissível. Ou seja, manifestações dos poderes soberanos devem estar conformadas à Constituição Federal.

New Motor Vehicle Bd. v. Orrin W. Fox Co. (439 U.S. 96 (1978)), por sua vez, envolveu a análise do California Automobile Franchise Act, o qual exigia que a abertura ou realocação de um revendedor, por parte de empresa automobilística, dentro da área de um revendedor preexistente, dependesse da aprovação do California New Motor Vehicle Board. Essa aprovação dependia doprotesto por parte do revendedor preexistente junto ao Board, sendo certo que ao Board cabia notificar a automobilística do protesto sem que, necessariamente, tivesse avaliado o mérito do protesto previamente à aludida notificação da automobilística.

A falta de análise prévia à notificação da automobilística levou a que o tribunal distrital entendesse que o direito da automobilística e do pretendente revendedor ao devido processo legal (décima-quarta emenda à constituição dos EUA) foi violado. A Suprema Corte, discordando, fez observar que não havia infração do devido processo legal. Atendo-nos ao lado concorrencial, que nos interessa, o Ministro Brennan observou que se tratava da emanação do poder soberano do legislativo da Califórnia com o objetivo de evitar práticas comerciais injustas ou opressivas ao comércio por meio da regulação da atividade comercial. A falta de análise prévia à notificação da automobilística ou a necessidade de protesto por parte do ofendido não constituiriam irregular delegação de política pública (state action) aos administrados. Uma legislação não deve ser reputada inválida apenas porque aqueles a quem pretende proteger podem abrir mão da sua proteção.

A conclusão fundamental para a nossa análise foi ditada pelo Ministro Brennan no sentido de que a norma California Automobile Franchise Act foi promulgada para substituir a concorrência e, portanto, estaria fora do alcance das normas concorrenciais por meio da isenção state action. Caso um efeito adverso sobre o processo competitivo fosse suficiente para tornar uma norma inválida, o poder da Administração em estabelecer a regulação de atividades econômicas estaria efetivamente destruído (Exxon Corp. v. Governor of Maryland, 437 U. S. 117, 437 U. S. 133. Pp. 439 U. S. 110-111).

Afirmado o princípio da imunidade concorrencial para políticas públicas, o caso Cal. Liquor Dealers v. Midcal Aluminum, Inc. (445 U.S. 97 (1980) ou, simplesmente, Midcal, fez acrescer que, para a efetiva caracterização da imunidade, era imprescindível a supervisão ativa do regulador – sem o que a política pública (state action) se converteria em atividade eminentemente privada (private action). Trata-se do princípio norteador do voto divergente do Ministro White em NASD – o qual, embora divergisse nas conclusões da decisão dos seus homólogos, trouxe princípios que já eram apontados na jurisprudência daquele tribunal.

Em Midcal foi analisado o sistema de precificação para o vinho adotado no estado da Califórnia. Nesse modelo, o produtor de vinho e os atacadistas tinham o dever de definir os preços a serem cobrados pelos atacadistas em contratos a serem registrados com o estado. O atacadista vendendo abaixo do valor pactuado poderia ser multado ou ter a sua licença suspensa ou revogada. Nesse sentido, um atacadista acusado de vender vinho a preço mais baixo que aquele estabelecido ajuizou ação junto ao Tribunal de Apelação da Califórnia, à qual foi dado provimento por se entender haver violação ao Sherman Act.

Esse entendimento foi confirmado pela Suprema Corte, segundo a qual havia fixação de preço de revenda, dado que o produtor poderia sustar a concorrência definindo os preços cobrados pelos atacadistas. Apontou, ainda, que o envolvimento da Administração não é suficiente para estabelecer a imunidade Parker v. Brown: embora houvesse uma clara política pública expressa e articulada visando permitir a fixação de preços de revenda, não se preenchia o segundo requisito, qual seja a supervisão ativa pela própria Administração (actively supervised by the State itself). De acordo com o sistema, a Administração simplesmente autorizava os preços determinados pelos produtores e punia quem os desafiasse – de tal modo que não estabelecia os preços, não analisava a sua razoabilidade, não regulava os termos dos contratos, não monitorava as condições do mercado e não procedia ao reexame do programa. Segundo observado, a política concorrencial nacional não poderia ser ofuscada por uma fina capa (gauzy cloak) de envolvimento da Administração em algo que se torna, essencialmente, um acordo privado de fixação de preços. Não havia, ademais, prova que indicasse que o sistema adotado ajudava de qualquer modo a sustentar os pequenos retalhistas ou a conter o consumo de álcool pelos californianos e, que, portanto, indicasse que esse mesmo sistema fosse reputado mais relevante para o estado da Califórnia que a proteção da concorrência.

É interessante notar, a partir dessa última observação, que, apesar da falta de uma ativa supervisão, o tribunal apelou, também, aos próprios resultados da regulação, a fim de verificar se haveria razoabilidade em percebê-la como efetiva política pública. Não vejo nessa análise material da regulação um interesse do tribunal em definir, peremptoriamente, se a matéria era passível de ser regulada e se essa regulação poderia afastar a defesa da concorrência – o que viria a consistir em indevida ingestão de um poder soberano (judiciário) em outro (executivo ou legislativo). Vejo, sim, uma análise ad cautelam da Suprema Corte que, apesar de não encontrar supervisão ativa formal, teria intentado verificar a existência de algum efeito positivo sobre o mercado que indicasse, eventualmente, uma auto-regulação que pudesse suprir essa ativa supervisão. Ou seja, a Suprema Corte tentava, sim, verificar se, sob qualquer ponto de vista, ela estaria ingerindo em uma política pública – e não, em sentido inverso, simplesmente analisando se, ainda que houvesse supervisão ativa, poderia ser estendida àquele caso a isenção Parker v. Brown. Aliás, os casos já analisados permitem concluir que a Suprema Corte utiliza a supervisão ativa como critério de aferição da relevância do programa para o estado. No presente caso, a cautela em relação a esse pressuposto – que não deixa de ser uma presunção relativa – levou a que tribunal averiguasse, ainda, se a regulação não era, de fato, efetiva para, só então, afastar plenamente a imunidade concorrencial.

Finalmente, 324 Liquor Corp. v. Duffy (479 U.S. 335 (1987)) reafirma o posicionamento da Suprema Corte em Midcal para o mercado de bebidas alcoólicas no estado de Nova York, em função da ausência da ativa supervisão do estado. Relembra-se, porém, que, em Parker v. Brown, a Suprema Corte decidiu que o Sherman Act não se aplicava à conduta anticoncorrencial de um estado atuando por meio do seu legislativo (Hallie v. Eau Claire, 471 U. S. 34, 471 U. S. 38 (1985)). Observa-se, ainda, que Parker v. Brown se apóia nos princípios do federalismo e da soberania os estados - o que, se por um lado, reforça o entendimento de que uma manifestação inconteste do poder soberano excepciona a aplicação do direito concorrencial, traz à luz a inviabilidade de uma transferência às cegas da state action para o ordenamento brasileiro.

Na linha dos casos acima expostos, penso por bem resumir, abaixo, quatro das mais relevantes constatações extraídas para a revisão da análise da imunidade concorrencial: (i) a excepcionalidade do afastamento da concorrência, (ii) a instrumentalidade da supervisão ativa, (iii) a especificidade da norma regulatória em relação à norma concorrencial e (iv) o enquadramento da política pública como manifestação de um poder soberano. Esses quatro entendimentos serão resumidos no item 3 abaixo.

 

3 A JURISPRUDÊNCIA E A DOUTRINA NO BRASIL À LUZ DA DOUTRINA PARKER V. BROWN: análise ex post

3.1 Porosidade regulatória: imunidade e grau de complementação da concorrência pela regulação

Contrariamente aos ensinamentos de Calixto Salomão Filho e à jurisprudência que vem se consolidando no CADE, a substituição da concorrência pela regulação pugnada pela doutrina Parker v. Brown há de ser excepcional, limitando-se ao estritamente necessário. Por um lado, isso implica afirmar que ela é mais restrita que afirmado por Salomão Filho, porquanto não demanda a plena substituição da concorrência, mas a sua isenção apenas nos limites estritamente necessários.

Por outro lado, ressalte-se, isso nos leva a afirmar que a isenção é, casuisticamente, mais ampla e não abarca, apenas, as concessões, mas qualquer posicionamento manifesto por um dos poderes soberanos no sentido de substituir a concorrência. Sendo desnecessário estendê-la a todos os aspectos de determinado setor, torna-se mais factível admiti-la mais largamente em pequenas doses.

Esse comportamento paradoxal, ainda não analisado pela jurisprudência do CADE, é que confere a benéfica convivência entre a regulação e a concorrência, tornando-as complementares em lugar de superpostas. Vale frisar que, da forma posta por doutrina e jurisprudência brasileiras, tem-se caminhado no sentido de servir à substituição da regulação pela concorrência, em sentido inverso àquele no qual foi concebida a isenção Parker v. Brown.

3.2 Supervisão ativa como proxy da relevância regulatória

A supervisão ativa não é um dado em si, mas a aferição da relevância daquela política pública que ensejou a substituição da concorrência nos limites do necessário. A concorrência, observe-se, não deve, nessa linha, ser afastada sem que haja motivo relevante para tanto. A aferição da relevância se dá pelo registro da qualidade da supervisão pelo regulador. Nesses termos, é de rigor reconhecer que, mesmo a lei demandando que o regulador leve em consideração questões concorrenciais na análise regulatória, não haveria como concluir que a supervisão não é ativa quando o regulador poderia, simplesmente, ter definido a concorrência  incompatível com a política pública após a devida análise do setor.

Como bem se extrai da jurisprudência norte-americana, apenas o estudo do histórico dos julgados e da própria legislação regulatória apontam para a mens legis, sob pena de o CADE, verdadeiro órgão de Estado, intervir na formulação de uma política pública implementada pelo regulador. Se a agência é ativa, não cabe ao CADE julgar que a concorrência seja um bem per se e, por subseqüente, inafastável, situando-se acima de um valor que uma lei específica publicada por um dos poderes soberanos determinou que fosse escolhido pelo regulador ativo.

3.3 Especificidade da intervenção regulatória

A intervenção generalizada do CADE advém do entendimento de que não há exceções concorrenciais escritas (ou explícitas, no dizer de Calixto Salomão Filho). Por esse motivo, aplica-se sempre que exista contrariedade ao ambiente concorrencial, ainda que em ambiente regulado. Essa capacidade de intervir permite ao CADE, mesmo que indiretamente, interferir na regulação e, por subseqüente, na política pública de um setor (poder político), normatizando casuisticamente.

Observe-se, porém, que, se a norma concorrencial é ampla e enseja a jurisprudência do CADE no sentido de não haver exceções à sua atuação, as normas regulatórias são específicas a um determinado setor. Isso nos conduz, inequivocadamente, ao clássico confronto entre norma geral e norma específica, cuja resposta os romanos já deram com a primazia da norma específica de igual hierarquia.

3.4 Poder político

Um dos elementos essenciais na construção histórica da imunidade concorrencial nos EUA veio da necessidade de garantir a não intervenção estadual em matéria legislada em âmbito federal e vice-versa. A conclusão a que chegou a Suprema Corte estava em que o legislativo federal poderia impor obrigações aos estados federados e que, portanto, os regramentos estaduais não poderiam ir de encontro às leis federais. Por outro lado, os estados estariam livres para conceber políticas públicas que afastassem a lei concorrencial se fosse demonstrado que aquela exceção era realmente necessária. A evidência da necessidade de fato decorria da prova de que o estado supervisionava ativamente a consecução daquela política pública (state action). Essa interpretação se estendeu para conflitos entre os poderes federais pela já comentada teoria da pervasive power.

Essa noção histórica tem o grande mérito de fazer observar que, na ausência de hierarquia estabelecida entre regulação e concorrência, isenções podem ser criadas (i) pela especificidade da norma regulatória e (ii) pela execução, pelo regulador, de políticas públicas formuladas pelos poderes soberanos. Essas manifestações que, a meu ver, são sempre explícitas – e nisso discordo de Salomão Filho -, decorrem de julgados do judiciário, normas do legislativo e programas do executivo, que devem estar traduzidos em regulamentos cumpridos pela agência ou outro regulador.

Não poderia, nessa linha, uma agência concorrencial intervir onde um poder soberano tenha afastado a sua interferência pela supervisão ativa de um regulador. Seria não só hierarquicamente desarrazoado, mas, propriamente, uma subversão da relação delegante-delegado e uma afronta ao art. 2º da Constituição Federal de 1988 (CF). Essa atuação desvirtuaria, ainda, a própria concepção do CADE como órgão de Estado, visto que interferência na regulação implicaria o redesenho da estratégia traçada para determinado setor, transformando a autarquia em órgão formulador de políticas públicas e, portanto, de governo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho apresentou, paulatinamente, doutrina e jurisprudência brasileiras em matéria de análise concorrencial em setores regulados, fazendo observar a baixa uniformidade entre a linha divisória para a atuação do CADE proposta em doutrina e aquela consubstanciada nas conclusões do próprio órgão judicante da concorrência. Ante essa análise, divisou-se, ex ante, a necessidade de proceder à análise dos casos jurisprudenciais norte-americanos, em função de (i) tratarem com riqueza as motivações para o disciplinamento do assunto e (ii) abordarem essa relação de forma menos parcial, uma vez  que a imunidade regulatória à concorrência surge de julgados da Suprema Corte norte-americana e, portanto, do poder judiciário.

O estudo veio mostrar que a teoria sob análise, ou seja, a imunidade Parker v. Brown, visa garantir que a política pública que se manifeste em uma regulação, ao justificar a ativa supervisão do ente regulador, represente a clara intenção de substituir, mesmo que parcialmente, a concorrência. A substituição, frise-se, não precisa ser plena – ela se opera, apenas, onde a convivência entre a concorrência e a regulação não for funcional. Embora haja primazia da norma específica regulatória, o afastamento da aplicação concorrencial deve ser analisado incidenter tantum, restringindo-se ao estritamente necessário. Trata-se da releitura da imunidade concorrencial originária do leading case Parker v. Brown, analisando-a, desta vez, teleologicamente.

As teorias não foram concebidas para admitir a intrusão do CADE em assuntos regulatórios na discordância da política externada pelas agências especializadas, mas para afirmar a primazia da regulação quando, (i) a partir da escolha de um valor prioritário em relação à defesa da concorrência (substituição da concorrência), (ii) esse valor vier a ser efetivamente implementado como política de governo (fiscalização ativa).

A regulação é porosa. Apenas os três poderes são soberanos por meio dos supremos representantes do executivo, legislativo e judiciário. É assim que ao legislativo é licito intervir na esfera antitruste, formulando isenções concorrenciais, como o faz o art. 88 do projeto de lei para o novo SBDC, ao redefinir o que é um ato de concentração. Da mesma forma o judiciário, ao avaliar a competência de atuação CADE em operações envolvendo instituições financeiras. Nesse mesmo sentido, expressas políticas regulatórias priorizadas pelo chefe do executivo não devem sofrer interferências concorrenciais na sua substância.

O CADE atua nos poros regulatórios, complementando e/ou suprindo a regulação – e não a contradizendo. É, no mínimo, paradoxal aceitar a existência de um setor regulado, analisar tal setor com base na estrutura regulada e, alfim, querer redefinir, parcialmente, a regulação do setor, como se a regulação pudesse ser desmembrada sem perder o sentido originalmente desejado. Em uma ordem constitucional em que a concorrência não se sobrepõe à regulação, como poderia derrogá-la ou, mormente, ab-rogá-la?

Poder-se-ia, eventualmente argumentar que esse desenho conferiria excessiva discricionariedade ao Executivo. Observo, contudo, que essa regra não é mais favorável ao despotismo que a restrição regulamentar da soberania regulatória do Executivo. Ambos os modelos pressupõem um Estado de Direito, sem o qual qualquer regra não vale mais que a vontade do ditador. E, no Estado de Direito, o direito concorrencial só pode ser aplicado a um setor regulado na medida em que com ele não conflite, sob pena de verificarmos atividade regulatória indireta.

A noção de que, no limite, há nichos nos quais a convivência entre concorrência e regulação é inviável e que a regulação – ao representar a política do estado (state action) e, portanto, manifestação soberana de um dos três poderes – afasta, na presença de ativa supervisão do regulador, a aplicação da concorrência, permanece pouco enfrentada no Brasil. Esse é, contudo, o sentido em que foram erigidas as doutrinas state action e a pervasive power e sob esse prisma é que se deve repensar a aplicabilidade pura das teorias concebidas no antitruste norte-americano.

REFERÊNCIAS

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ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Certiorari. Os Apelantes, advogados e membros da ordem dos advogados do estado do Arizona, foram por ela acusados de violar o código de ética da suprema corte estadual, a qual proíbe a propaganda, em jornais ou outra mídia, dos serviços de advogado. A contenda teve como fundamento uma propaganda de jornal veiculada por pedido dos apelantes, na qual eram oferecidos  de advogado a honorários bastante razoáveis e listados os preços para certos serviços. A Suprema Corte estadual afirmou o posicionamento do comitê da ordem e entendeu que s apelantes violaram a regra, afastando a alegação de que a regra feria os §§1o e 2o do Sherman Act em razão da tendência de limitar a concorrência, assim como o direito dos apelantes à primeira emenda (tradução nossa). Bates v. State Bar of Arizona, 433 U.S. 350 (1977). Relator: Ministro Blackmun. J. em 27 de junho de 1977. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/433/350/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Recurso voluntário (appeal). Trata-se de ação intentada em corte federal para fazer cessar a execução de um programa agrícola estadual, sob alegação de que colidia com as leis federais antitruste. A corte entende que o programa de comercialização adotado pelo estado da Califórnia, regulando o manejo, a disposição e preços de uvas passas produzidas no estado, em larga parte alienadas no comércio interestadual ou internacional, não fere o Sherman Act (tradução nossa). Parker v. Brown, 317 U.S. 341 (1943). Relator: Presidente Stone. J. em 4 de janeiro de 1943. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/317/341/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Recurso voluntário (appeal). O Ato de Franquia Automobilística (Ato) do estado da Califórnia requer que um fabricante de automóveis obtenha aprovação do Conselho de Carros Motorizados anteriormente à abertura ou realocação de um negócio varejista dentro do mercado de um franqueado preexistente e em caso de protesto deste. O Ato exige, ainda, que o Conselho notifique o fabricante de tal obrigação mediante o protesto do franqueado já existente. O Conselho não precisa realizar uma audiência sobre o mérito do protesto antes de notificar o fabricante. Os apelantes, um fabricante e possíveis novos franqueados e realocados, uma vez notificados, nos termos do Ato, dos protestos de franqueados preexistentes e antes que houvesse qualquer audiência, moveram ação alegando a inconstitucionalidade do estatuto com fundamento no devido processo legal. O tribunal distrital entendeu que a ausência de audiência prévia negava aos produtores e seus possíveis franqueados o devido processo legal demandado pela 14a emenda (tradução nossa). New Motor Vehicle Bd. v. Orrin W. Fox Co., 439 U.S. 96 (1978). Relator: Ministro Brennan. J. em 5 de dezembro de 1978. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/439/96/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Certiorari. O réu, único fornecedor de eletricidade a sudeste de Michigan, também oferta a seus clientes residenciais 50% da lâmpada padrão mais utilizada – prática que precede a regulação estadual que regula o setor elétrico. A referida prática de venda de lâmpadas é aprovada pela Comissão de Serviços Públicos de Michigan e não pode ser mudada até que o réu peticione e a Comissão aprove uma nova tarifa. O requerente, varejista atuante na venda de lâmpadas, traz a presente ação para alegae que o réu, usando seu poder de mercado no segmento de distribuição de energia elétrica, restringe a competição no mercado de lâmpadas, em violação ao Sherman Act. O tribunal distrital, em julgamento sumário, estendeu a imunidade Parker v. Brown ao caso, de tal sorte que as práticas estariam resguardadas das leis antitruste federais – posicionamento confirmado no tribunal recursal. A Suprema Corte entende que nem a aprovação do estado de Michigan, tampouco a determinação de que a política não pode ser alterada até que uma nova tarifa seja peticionada são argumentos suficientes para elidir a aplicação das leis concorrenciais federais (tradução nossa). Cantor v. Detroit Edison Co., 428 U.S. 579 (1976). Relator: Ministro Stevens. J. em 6 de julho de 1976. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/428/579/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Certiorari. Os requerentes, marido e mulher, contrataram a compra de uma casa em Fairfax, Virginia, e o financiador da compra demandou que eles fizessem seguro, o que demandava análise legal restrita a advogados pertencentes à ordem dos advogados da Virginia. Os requerentes tentaram, sem sucesso, encontrar um advogado que examinasse o título cobrando abaixo da tabela da ordem dos advogados do condado de Fairfax, a qual é fiscalizada pela ordem do estado da Virginia, ora ré. Os requerentes, então, entraram com a presente ação em face dos réus alegando que a fixação e cobrança de honorários mínimos representavam fixação de preços em violação ao §1o do Sherman Act. Embora tenha isentado a ordem estadual do Sherman Act, o tribunal distrital acolheu o pedido em face da ordem de advogados do condado. O tribunal de apelação reverteu a decisão, sustentando que a ordem estadual não se sujeitava ao Sherman Act nos termos de Parker v. Brown e que a ordem local também estava isenta, dado que o exercício da advocacia não se confundia com a mercancia. Entendeu, ainda, que as atividades das rés não afetavam de forma significativa o comércio interestadual de tal sorte a que a aplicação do Shreman Act deveria ser afastada. A Suprema Corte entendeu que a fixação de honorários mínimos, tal como publicados pela ordem local e fiscalizados pela ordem estadual, constituía afronta ao §1o do Sherman Act (tradução nossa). Goldfarb v. Virginia State Bar, 421 U.S. 773 (1975). Relator: Presidente Burger. J. em 16 de junho de 1975. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/421/773/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Recurso voluntário (appeal). O histórico legislativo do Ato de Comunicações de 1934 (“Ato”) revela que a Federal Communications Commission (“FCC”) não tem o poder de decidir em matéria antitruste e que os atos da FCC não visam afastar a aplicação das leis antitruste em tribunais federais. Não havendo regulação ampla (pervasive) ou estrutura tarifária envolvida, o Ato não demanda aplicação da doutrina de jurisdição primária, o que permitiria que o governo só analisasse a operação como uma violação do Sherman Act por meio de procedimento próprio diante da FCC ou em litígio judicial contestando a decisão da FCC. Uma vez que a FCC não tem poderes para analisar questões concorrenciais, esta ação concorrencial independente não está atrelada a decisão anterior, coisa julgada ou preclusão. O julgamento é considerado nulo e o caso, enviado à corte inferior para instrução (tradução nossa). United States v. RCA, 358 U.S. 334 (1959). Relator: Presidente Warren. J. em 24 de fevereiro de 1959. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/358/334/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Recurso voluntário (appeal). O presente recurso exige que o tribunal determine até que ponto da autoridade reguladora atribuída à Securities and Exchange Commission (“SEC”) por meio do Ato Maloney e pelo Ato de Investimento Corporativo de 1940 substitui a política antitruste do §1o do Sherman Act. Em discussão está se certas práticas de compra e distribuição adotadas por fundos mútuos estão imunes da responsabilidade concorrencial. Concluímos que sim e, nesses termos, mantemos a decisão do tribunal distrital (tradução nossa). United States v. NASD, Inc., 422 U.S. 694 (1975). Relator: Ministro Powell. J. em 26 de junho de 1975. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/422/694/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Recurso voluntário (appeal). De acordo com o §101-bb da Lei de Controle de bebidas Alcoólicas de Nova York e regulamentos a Autoridade Estadual de Bebidas Alcoólicas (LSA), varejistas de bebidas alcoólicas devem cobrar, ao menos, 112% do valor de rótulo dos atacadistas em vigor no momento da venda ou oferta. Os atacadistas devem informar à LSA, mensalmente, os valores de rótulo e podem reduzir o preço de venda ao varejista sem reduzir o valor de venda ao consumidor final. Como os varejistas costumam comprar bebidas alcoólicas em caixas (o que baixa o seu valor de compra), atacadistas podem compelir que os varejistas vendam o produto por mais de 112% do valor efetivamente pago pelo produto. Como resultado de o apelante ter vendido garrafas de bebida alcoólica abaixo dos 112% do valor de rótulo, sua licença foi suspensa por 10 dias. A Suprema Corte entende que o art. 101-bb é inconsistente com o  §1o do Sherman Act. O ajuste de preço de revenda tem sido desde longa data  considerado per se uma violação antitruste. A legislação de Nova York, que se aplica a todos os atacadistas e varejistas, admite “controle vertical” dos preços de varejo pelo atacado. Tal abrangente fixação de preço tem elevado potencial de reduzir a competição entre e intramarcas, porque evita que os atacadistas incentivem a competição no varejo. O sistema de preços de Nova York não tem validade sob o escudo da isenção antitruste da state action. O sistema estadual preenche o primeiro critério Parker v. Brown, de que a prática analisada seja articulada e expressa de forma clara como política de Estado. Contudo,  não preenche o segundo, de que a política do estado seja ativamente supervisionada pelo próprio estado. Nova York simplesmente autoriza o estabelecimento de preços e fiscaliza os preços estabelecidos pelos entes privados. O estado eliminou a concorrência entre varejistas sem que houvesse a sua substituição por regulação adequada (tradução nossa). 324 Liquor Corp. v. Duffy, 479 U.S. 335 (1987). Relator: Ministro Powell. J. em 13 de janeiro de 1987. Disponível em <http://supreme.justia.com/us/445/97/case.html>. Acesso em 20 de setembro de 2008.
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A Revista

A Revista ANTT é uma publicação eletrônica técnico-científica de periodicidade semestral, criada com a finalidade de divulgar o conhecimento na área de Transportes Terrestres para o público em geral, provocando o intercâmbio de informações. O público-alvo é composto por servidores, colaboradores, meio acadêmico, setor regulado, outros órgãos públicos e profissionais da área.

Entrevistados

  • Edição da Revista:
    Volume 3 Número 2
    Novembro de 2011
  • Josias Sampaio Cavalcante Júnior
    Diretor-Presidente da VALEC
    Edição da Revista:
    Volume 5 Número 1
    Julho de 2013
  • Mário David Esteves Alves
    REFER TELECOM
    Edição da Revista:
    Volume 4 Número 1
    Maio de 2012
  • Luiz Pinguelli Rosa
    Presidente do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas
    Edição da Revista:
    Volume 4 Número 2
    Novembro de 2012
  • Luís Henrique Baldez
    Presidente Executivo da ANUT
    Edição da Revista:
    Volume 3 Número 2
    Novembro de 2011
  • Marcelo Perrupato
    Secretário Nacional de Políticas de Transportes
    Edição da Revista:
    Volume 3 Número 1
    Maio de 2011
  • Paulo Sérgio Oliveira Passos
    Ministro dos Transportes
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 2
    Novembro de 2010
  • José Roberto Correia Serra
    Diretor presidente da CODESP
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 1
    Maio de 2010
  • Bernardo José Figueiredo Gonçalves de Oliveira
    Diretor Geral da Agência Nacional de Transportes Terrestes - ANTT
    Edição da Revista:
    Volume 1 Número 1
    Novembro de 2009
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