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Volume 2 Número 2 - Novembro de 2010
ISSN: 2177-6571

Reportagem

Território, transportes e desenvolvimento: a atuação recente do Estado brasileiro.

por Sílvio Barbosa da Silva Júnior

Território é um conceito bastante usual para a geografia. Mais que usual, é o conceito-chave com o qual trabalha aquela ciência. Grosso modo, território se refere ao exercício de poder sobre um espaço determinado. Em geral, ao espaço dominado/ gerido por um agente estatal nacional, regional ou local.

Se o território foi fundamental em outros períodos nos termos dos expansionismos estatais, de questões bélicas ou meramente palco de nacionalismos exaltados e aspectos étnico-culturais, cada vez mais ele se torna importante para outras questões, notadamente aquelas relativas ao desenvolvimento sócio-econômico e provimento de qualidade de vida às populações que abrigam.

Sob este último aspecto, o conhecimento do território e de suas características, de seu conteúdo, é fundamental para ações efetivas que visem à melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento sócio-econômico nas mais variadas escalas, do local ao global. Pensar desenvolvimento pressupõe pensar o território e, mais ainda na atualidade, pensar o território sob uma perspectiva de sustentabilidade – econômica, social, ambiental, política...

Um dos elementos mais destacados na organização territorial são seus sistemas de movimento – ou de transportes, como preferirem. São eles que organizam os fluxos de pessoas e bens no espaço, sendo, ao mesmo tempo, um indicativo do grau de desenvolvimento e um indicativo de que a organização estatal que gere aquele território preocupa-se com seu desenvolvimento.

O livro espanhol “Geografía de los transportes” de Joana Maria Seguí Pons e Maria Rosa Martínez Reynés é um dos poucos “manuais” de planejamento de transportes lançados recentemente. Lança olhares sobre diversas questões relativas ao planejamento de transportes, inclusive sua vasta interface com o território: o transporte não é uma atividade finalística, mas sim algo que depende de fatores espaciais e, concomitantemente, interfere sobre a dinâmica espacial (ou territorial).

É com este ponto que as autoras iniciam a obra, falando das relações conceituais entre as categorias de análise da geografia – espaço, território – e os transportes, bem como trazendo o estado da arte da temática, abordando, inclusive, questões tecnológicas destes estudos. Analisa, para cada sub-setor – transporte marítimo, transporte aéreo, transportes terrestres – o estado atual dos estudos e do mercado de cada um. Abordam, ainda, questões relativas à intermodalidade e aos sistemas urbanos e regionais de transportes de passageiros, ainda que focados nas realidades espanhola e européia.

Porém, o ponto alto do livro não está em ser um dos poucos manuais de planejamento de transportes na atualidade trazendo questões de ordem tecnológica, operacional e acadêmica do setor, que preenchem boa parte do livro; sua grande contribuição se encontra nos últimos capítulos, nos quais abordam três itens relevantes: impactos dos transportes na economia e no território; relações entre transporte e questões ambientais; e questões relativas a planejamento e políticas de transportes.

No primeiro item chegam a uma conclusão semelhante ao que já dissemos anteriormente: transporte e desenvolvimento estão intimamente ligados: o atendimento adequado às demandas, o fornecimento de infraestrutura adequada às regiões deprimidas, levando em consideração o potencial de desenvolvimento e os custos de implantação/ manutenção, obviamente.

No que se refere aos aspectos ambientais, foca na falsa dicotomia existente desenvolvimento e meio ambiente. O desenvolvimento sócio-econômico atual não pode cometer os erros pretéritos e presentes, mas sim superá-los, internalizando diretrizes ambientais. A isto se refere à sustentabilidade: à necessidade do desenvolvimento econômico e social sem abrir mão da manutenção das qualidades ambientais necessárias à sobrevivência e reprodução das gerações futuras. Pois se o transporte é uma das linhas-mestras do desenvolvimento, seu planejamento deve levar em consideração a qualidade ambiental.

Por fim, ao tratar de aspectos de políticas públicas e planejamento, reafirmam a importância de se levar em consideração os aspectos ambientais, notadamente os aspectos firmados em conferências internacionais. Ressaltam, ainda e relação ao planejamento, ao relatarem o caso europeu, a necessidade patente de articulação entre as instituições – no caso europeu em nível transnacional – para a consecução de sistemas de transporte que suportem efetivamente um desenvolvimento sócio-econômico adequado e sustentável.

Mas e no Brasil destes tempos, como anda sendo realizado o planejamento de transportes? Ele tem tido alguma relação com algum ordenamento territorial maior? As questões ambientais são tratadas como deveriam? As instituições se articulam como deveriam? Para responder tais perguntas em profundidade seria necessário se debruçar algum tempo sobre estas questões. Sem a pretensão de esgotar o assunto em uma pequena reportagem, o objetivo aqui é mais lançar um pouco de luz sobre o assunto e, quem sabe, propiciar o início de um debate necessário sobre ele.

Como acadêmico que estuda sobre o assunto, como profissional que trabalha no setor e, ainda mais como cidadão e usuário das redes de transportes, a impressão que tenho é a de que a atuação estatal no setor de transportes se dedica majoritariamente sobre ações pontuais. Busca-se resolver congestionamentos com duplicações, alargamentos, pavimentam-se rodovias onde começa a emergir uma demanda, estudam-se melhorias em portos já congestionados, ou a transferência de suas cargas para portos novos. Não observo um planejamento que pense um sistema de transportes articulado com a dinâmica social e econômica – materializadas na dinâmica territorial.

Noto, ainda, deficiência no acompanhamento de obras – não é raro ver em uma rodovia uma placa informando uma data já ultrapassada para o fim de uma obra ainda em curso. E, tão grave quanto, é observar a falta de clareza nos critérios para estabelecimento de prioridades, focando o uso do recurso público na melhor alternativa possível.

No entanto é possível observar alguns avanços recentes. Desde 2006, e lançado oficialmente em 2007, há o Plano Nacional de Logística e Transportes – PNLT. Este plano consiste numa tentativa de resgatar o planejamento de longo prazo – abandonado há algum tempo – para o setor de transportes, por meio da indicação de obras estruturantes do setor – construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, terminais, hidrovias, dentre outros aspectos. Um ponto positivo é a participação dos poderes públicos regionais e locais, bem como de setores da sociedade civil organizada na elaboração do PNLT. No entanto, a construção do plano ainda é prejudicada pela carência de dados e pela falta de uma diretriz de ordenamento do território nacional que sirva de guia.

Derivado do PNLT há o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC –, lançado em 2007, cujo objetivo é alcançar um nível estabelecido de crescimento econômico. Para tal, foram pensadas e desenvolvidas ações em termos econômicos e institucionais, bem como investimentos em infraestrutura de transportes, energia, habitação e saneamento. No que se refere aos investimentos em infraestrutura de transportes, buscou-se a solução de alguns gargalos logísticos dentre os elencados no PNLT, visando, por fim, o crescimento econômico. Apesar da execução de obras abaixo do esperado, destaco como ponto positivo a existência de uma metodologia de gestão e acompanhamento de obras, bem como a derivação das ações do plano a partir do PNLT, um plano construído em parceria com a sociedade.

Durante o Encontro Nacional de Geógrafos , ocorrido em Porto Alegre no fim de julho, participei de grupo de discussões que trabalhou, dentre outros aspectos, o setor de transportes em seus diversos aspectos, dentre os quais a questão institucional, a atuação recente do Estado brasileiro e o papel do território nos dias atuais. Lá tive a oportunidade de conversar com o geógrafo Daniel Huertas, que tem como foco de estudo a atuação do estado brasileiro perante a ocupação amazônica recente, expansão da fronteira agrícola e a articulação das redes de transporte.

Daniel Monteiro Huertas, jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – campus de Bauru, e geógrafo graduado na Universidade Federal de Uberlândia – UFU, mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é docente da Escola Superior Diplomática (ESD), curso preparatório para a seleção do Instituto Rio Branco (IRBr), e doutorando em Geografia Humana pela USP, com ênfase em Geografia da Circulação.Além disto, tem o hábito de percorrer o país, conhecendo seus mais recôndidos grotões: é um profundo conhecedor do território brasileiro. Segue o conteúdo de nossa conversa:

1. Sob a perspectiva de um geógrafo que trabalha a questão do território e suas relações com os sistemas de transporte, como você compreende a importância destes sistemas para o desenvolvimento nacional?

Não acredito em desenvolvimento nacional sem um correlato desenvolvimento dos sistemas de transportes, sobretudo em um país de dimensões continentais como o Brasil. Mas estes, por si só, também não garantem o pleno desenvolvimento das potencialidades socioeconômicas, pois os problemas do país não se restringem apenas à ineficiência da circulação. Mas duas questões, sob o meu ponto de vista, são de extrema relevância nessa discussão: os sistemas de transportes precisam ser orientados a privilegiar o mercado interno para assegurar o incremento das trocas interregionais e as forças produtivas também devem se esparramar por todo o território nacional, observadas as restrições ambientais no caso da Amazônia. Políticas que visam apenas a formatação de corredores de exportação não garantirão o desenvolvimento do país, principalmente em uma condição desfavorável na divisão internacional do trabalho – exportador de commodities agropecuárias e minerais e importador de bens de alto valor agregado.2. Como você avalia a atuação recente do estado brasileiro em relação ao planejamento de transportes?

Vejo que o governo federal já se deu conta de que a logística de transportes em tempos de globalização econômico-financeira é um poderoso instrumento de organização do território, mas o Estado perdeu a sua capacidade de execução e planificação a partir dos anos 80. Algumas evidências levam a crer que o governo Lula está tentando retomar parte dessa capacidade, mesmo que em outra conjuntura. O Estado não pode apenas restringir a sua função ao papel normatizador e regulador, já que talvez seja o único agente econômico capaz de corrigir as históricas e crônicas desigualdades regionais brasileiras. O primeiro passo já foi dado com a elaboração do Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT) e a criação de um órgão estatal nos moldes da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para gerenciá-lo será bem-vinda, desde que consiga alavancar um grande esforço de sinergia a nível federal e regional, concentrando a inteligência necessária para se pensar os sistemas de transportes do país. O extinto GEIPOT de alguma forma preenchia essa lacuna.

3. Dentre as políticas recentes, quais você considera como um avanço?

O reforço do papel das agências reguladoras, dotando-as de mecanismos institucionais que possam equacionar com justiça, inteligência e seriedade as concessões pretéritas e as que estão por vir. Destaco também a revogação da carta-frete, uma reivindicação histórica dos trabalhadores autônomos de carga rodoviária. A expansão ferroviária que está em curso no Brasil, mesmo aquém do ideal, merece ser citada.

4. E quais você considera como de patente necessidade de revisão?

O reconhecimento de que o modelo de concessões rodoviárias e ferroviárias estabelecido na década de 90 foi equivocado já é um grande avanço. Isso está obrigando a ANTT a elaborar diagnósticas e estudos da situação dos transportes terrestres no país para, em seguida, embasar a revisão de uma série de processos e normas dentro dos parâmetros legais. A partir daí o órgão terá condições técnicas de pressionar as concessionárias a cumprir de modo mais satisfatório o papel que lhes foi outorgado. É um absurdo que apenas 10% de toda a malha ferroviária esteja em plena capacidade. E os outros 90%? Estão subutilizados ou apodrecendo porque não é viável economicamente para as empresas? As concessionárias ferroviárias ficaram acomodadas no atendimento a grandes clientes cativos em trechos de alta densidade e esqueceram do restante do país. Os investimentos foram altamente concentrados. No modal rodoviário, o último lote de concessões federais, em trechos de altíssima densidade como a Régis Bittencourt (BR-116) e a Fernão Dias (BR-381), mostrou a deformação do modelo paulista, que cobra pedágios exorbitantes. Nesse caso, o modelo paulista precisa ser revisto urgentemente, pois é a “mina de ouro” do setor privado.

5. Quais pontos, por fim, devem ser aperfeiçoados, no seu entendimento, em relação à gestão estatal dos sistemas nacionais de circulação?

Regulamentação e estímulo à navegação de cabotagem; indução à aviação regional; incremento da navegação fluvial na Amazônia; elaboração de uma tabela nacional de frete rodoviário e desenho de um plano intermodal para o país, detectando nós e eixos que poderiam abrigar plataformas logísticas multimodais. Na questão rodoviária, principal modal de nossa matriz de transportes, acredito que os contratos de concessão ainda precisam ser aperfeiçoados em vários aspectos. Ainda vejo com alguma frouxidão a maneira pela qual alguns itens são cobrados pelo poder concedente. Em muitos casos, por exemplo, os investimentos programados não passam de objetos óbvios, como manutenção da via, implantação de sinalização adequada e dotação de infraestrutura de serviços, mas é preciso ir além. Praticamente toda a rede rodoviária federal foi construída entre os anos 30 e 70 e essa é a grande chance de o Estado exigir a duplicação de trechos importantes, correções de traçado e construção de obras de arte. Em outras palavras, pensar contrapartidas do setor privado capazes de oferecer um “choque de engenharia” nas principais artérias do país. Além disso, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste também precisam ser inseridas nesse contexto, e não apenas o “filé mignon”. Como fazer isso é a grande questão, pois são zonas do país com baixa atratividade econômica. Uma ideia seria vincular uma concessão de uma rodovia do Centro-Sul a uma do Maranhão, em um exemplo hipotético. Nesse caso, apenas a manutenção mínima do pavimento e da sinalização da via daquele Estado nordestino seria suficiente, mas isso demanda estudos para que sejam arquitetadas possibilidades de equilíbrio econômico-financeiro.

 

Assim como destaca nosso colega geógrafo, fica patente que, por um tempo, o Estado brasileiro abandonou o planejamento de vários setores, inclusive o de transportes. Recentemente observa-se uma ação mais intensa do Estado no sentido de retomar as rédeas do planejamento, ainda que, inicialmente, esteja focado em resolver gargalos ao invés de promover o desenvolvimento em áreas novas.

Outro ponto ainda conflituoso são as questões ambientais: não existe sinergia entre a atuação dos órgãos de transporte e aqueles responsáveis pelo licenciamento e gestão ambientais: os órgãos ambientais parecem não compreender a importância de obras de infraestrutura para o país, enquanto os planejadores de transporte encaram a questão ambiental como um entrave ao desenvolvimento. Isto poderia ser diferente se houvesse uma diretriz territorial nacional à qual seguir; deste modo, o pessoal da área ambiental levaria em consideração a proposta de organização territorial na concessão dos licenciamentos e na constituição de áreas de preservação; do mesmo modo, falta aos planejadores de transporte a capacidade de planejar empreendimentos menos impactantes – não sei se por questões de formação acadêmica ou outra qualquer.

O alerta que se faz novamente é à necessidade de um ente integrador de políticas públicas. E este ente só pode ser uma diretriz, um projeto nacional que tenha por base o território. Com uma organização territorial pretendida é possível traçar e articular as políticas setoriais em busca de um objetivo comum. É preciso que as instituições se articulem de forma mais afinada e que busquem estes objetivos comuns; é preciso, ainda, que se acelere esta lenta revalorização do território como guia das políticas públicas.

 


A Revista

A Revista ANTT é uma publicação eletrônica técnico-científica de periodicidade semestral, criada com a finalidade de divulgar o conhecimento na área de Transportes Terrestres para o público em geral, provocando o intercâmbio de informações. O público-alvo é composto por servidores, colaboradores, meio acadêmico, setor regulado, outros órgãos públicos e profissionais da área.

Entrevistados

  • Edição da Revista:
    Volume 3 Número 2
    Novembro de 2011
  • Josias Sampaio Cavalcante Júnior
    Diretor-Presidente da VALEC
    Edição da Revista:
    Volume 5 Número 1
    Julho de 2013
  • Mário David Esteves Alves
    REFER TELECOM
    Edição da Revista:
    Volume 4 Número 1
    Maio de 2012
  • Luiz Pinguelli Rosa
    Presidente do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas
    Edição da Revista:
    Volume 4 Número 2
    Novembro de 2012
  • Luís Henrique Baldez
    Presidente Executivo da ANUT
    Edição da Revista:
    Volume 3 Número 2
    Novembro de 2011
  • Marcelo Perrupato
    Secretário Nacional de Políticas de Transportes
    Edição da Revista:
    Volume 3 Número 1
    Maio de 2011
  • Paulo Sérgio Oliveira Passos
    Ministro dos Transportes
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 2
    Novembro de 2010
  • José Roberto Correia Serra
    Diretor presidente da CODESP
    Edição da Revista:
    Volume 2 Número 1
    Maio de 2010
  • Bernardo José Figueiredo Gonçalves de Oliveira
    Diretor Geral da Agência Nacional de Transportes Terrestes - ANTT
    Edição da Revista:
    Volume 1 Número 1
    Novembro de 2009
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